
Excerto de um abaixo assinado, resultantes de uma
conferência da Organização Buala, no Porto, em 7 de Julho de 2003:
A escravatura, a colonização, o genocídio e o etnocídio de
populações nativas em África, na Abya Yala e na Ásia, a racialização e a exploração
de povos e corpos-territórios humanos e não humanos, constituem os maiores
crimes cometidos contra as nossas humanidades. Desde o século XV, milhões de
pessoas foram sequestradas, escravizadas, violadas e submetidas às mais
variadas formas de desumanização, em função de um projeto colonialista, forjado
numa ideia perversa de civilização.
Portugal foi pioneiro nesse bárbaro empreendimento de
acumulação de capital baseado em práticas genocidas e escravocratas, tendo
deslocado quase 6 milhões de pessoas dos 12,500 milhões de registos. Foi o
último país da Europa a abolir a escravatura, em 1869, mantendo a prática do
trabalho forçado até aos anos 1960 do século XX. Foi ainda a última potência
colonial a reconhecer as independências dos territórios ocupados. Se, de facto,
o 25 de Abril fechou as portas ao fascismo salazarista, várias janelas ficaram
escancaradas e, através delas, os saudosistas vão reavivando a sua memória
colonial e (re)inscrevendo-a no espaço público. Portugal não se descolonizou
(...)
Nesse sentido, e na continuidade das reivindicações
históricas das organizações e movimentos de (e em) luta, exigimos ao
Estado Português:
1. Reconhecimento do COLONIALISMO, da ESCRAVATURA,
dos MASSACRES COLONIAIS, do TRABALHO FORÇADO, da negligência às FOMES, das
PRÁTICAS GENOCIDAS, ETNOCIDAS, SEGREGACIONISTAS e EPISTEMICIDAS enquanto
crimes contra a humanidade e, consequentemente, a formalização de pedidos
de desculpas.
2. Anulação de todas as dívidas
(odiosas, injustas, ilegais e/ou imorais) contraídas pelos países ocupados e
colonizados por Portugal e o pagamento de indemnizações às pessoas lesadas pelo
colonialismo, por exemplo, entre outros, aos ex-contratados de São
Tomé e seus descendentes.
3. Implementação de políticas públicas afirmativas,
transversais, de combate à desigualdade racial e ao racismo estrutural
através da mobilização de recursos financeiros consequentes, via Orçamento
de Estado, em áreas-chave para a equidade social – educação, emprego,
habitação, saúde, justiça, transportes, cultura – envolvendo diretamente
as pessoas racializadas e as suas organizações na definição, elaboração e
execução de políticas públicas. Para tal, é fundamental a urgente recolha de
dados étnico-raciais.
4. Adopção e plena implementação do princípio
jus soli, atribuindo a nacionalidade portuguesa a todas as pessoas que
nasceram e nascem em Portugal.
5. Desburocratização dos processos de pedido de vistos, livre
circulação e garantia dos direitos de cidadania para os imigrantes dos países
que foram colonizados por Portugal.
6. Criminalização do racismo, com condenação efetiva, para
as pessoas acusadas e indemnização financeira para as vítimas.
7. Desinvestimento nas prisões e
no policiamento racista e repressivo, com canalização de recursos
financeiros diretamente para as comunidades mais marginalizadas, de modo a
apoiar o seu fortalecimento, investindo, com vigor, em áreas fundamentais como
educação, saúde, habitação e emprego. Implementação de medidas políticas
estruturais, não reformistas, que tenham por horizonte a abolição das prisões e
a adoção de políticas sociais baseadas numa justiça retributiva
e restaurativa.
8. Instituição de uma Carta de Princípios Anti-Racistas e formação
em literacia étnico-racial, em todas as áreas da função pública e do sector
privado de prestação de bens e serviços, nomeadamente no âmbito da
educação básica.
9. Descolonização dos manuais escolares, designadamente
no que toca ao colonialismo português, com introdução no programa de
ensino da história de África, do Brasil e da presença negra e cigana/roma em
Portugal numa perspectiva não-eurocêntrica, submetendo-os à apreciação de
uma comissão formada por pessoas e organizações racializadas
e antirracistas.
10. Reconhecimento do papel dos Movimentos de Libertação
Africanos no 25 de Abril de 1974.
11. Isenção de propinas para
alunos provenientes dos países e territórios colonizados por Portugal.
12. Restituição às comunidades colonizadas, e sem
prejuízo de condições financeiras ou de outra natureza, dos objetos,
arquivos, artefatos e corpos humanos presentes nas instituições de cariz
museológico. Disponibilização de recursos financeiros e outros, de acordo
com as demandas dessas comunidades, no apoio às infraestruturas para receber e
ativar objetos, arquivos, obras e criação de uma plataforma de encontros para
troca de ideias sobre restituições e responsabilidades coletivas com a
participação ativa das comunidades.
13. Desmantelamento de estátuas e
de monumentos racistas, e contextualização das sequelas do passado colonial.
Desenvolvimento de políticas públicas de (sobre e para) a memória que destituam
o imaginário colonial e, simultaneamente, identifiquem e inscrevam as pessoas e
narrativas não-brancas ausentes do imaginário coletivo.
14. Construção do Memorial de Homenagem às Pessoas
Escravizadas, um dos projetos mais votados no Orçamento Participativo do
Município de Lisboa de 2017 e consecutivamente adiado. Discussão na
Assembleia da República sobre a memorialização das vítimas da escravatura e do
colonialismo como um projeto abrangente a nível nacional.
15. Total transparência no que diz respeito aos restos
mortais das 158 pessoas encontradas no Valle da Gafaria, em Lagos, atualmente a
cargo de uma empresa privada em Coimbra. A sua transladação e enterro, bem como
a digna memorialização do local (hoje um parque de estacionamento com um
mini-golfe no topo) como o mais antigo cemitério de pessoas escravizadas no
mundo e em diálogo com o Núcleo Museológico Rota da Escravatura.
16. Reconhecimento e inscrição da
figura de Amílcar Cabral no espaço público como um dos precursores da
democracia em Portugal.
17. Descolonização do hino e de
todos os símbolos nacionais que evoquem a exaltação do passado colonial.
18. Reconhecimento do
cabo-verdiano e do guineense enquanto línguas nacionais, à semelhança do
mirandês, e difusão da diversidade linguística que habita o país, através da
promoção de políticas públicas do seu ensino.
19. Implementação da data de 10 de Junho como o dia de
Alcindo Monteiro e de todas as vítimas de racismo e de xenofobia
em Portugal.
20. Políticas de reparação de biomas e de paisagens,
apoiando as comunidades dilaceradas pelo extrativismo e pela monocultura
intensiva e superintensiva, em Portugal e nos países que foram colonizados
por Portugal.
**
Entendemos que reparar tem necessariamente de provocar
uma ruptura radical com o sistema colonial e capitalista cujo brutalismo e
política de morte assombra ainda os futuros dos nossos povos.
Acreditamos que Portugal, tal
como toda a Europa, é estruturalmente racista e colonialista.
Sabemos que os crimes cometidos pelo colonialismo são não só
indefensáveis como irreparáveis. Entendemos, no entanto, que a reparação é
um imperativo, o único caminho possível para um sentimento de justiça com os
nossos ancestrais e para a construção de presentes e de futuros mais dignos e
mais justos.
Inscrevendo-se numa constelação histórica por reparações,
tão antiga quanto o colonialismo e a escravatura, e tendo nascido de um
contexto específico para acomodar distintas vontades e realidades
sócio-políticas, a Declaração do Porto: Reparar o Irreparável será sempre um
documento inacabado e, por isso mesmo, nele não se encerra
Extratos de uma petição à Assembleia da República de um
grupos de activistas africanos residentes em Portugal
Da celebração ao combate - Petição de um grupo de activistas africanos residentes em Portugal
Para: Ao Ex.mo Senhor Presidente da República; À Assembleia
da República, Governo e Partidos Políticos
As recentes conquistas desportivas nacionais têm vindo a ser
usadas para a reprodução de mitos sobre a multiculturalidade e harmonia
inter-racial do Portugal contemporâneo. Como portugueses não-brancos, e
imigrantes não-brancos residentes em Portugal, recusamos ser cúmplices desse
branqueamento.
O dia 10 de julho de 2016 ficará para a história do
desporto português. Pelo triunfo da seleção no europeu, e pelas medalhas (uma
de ouro, duas de bronze) conquistadas no campeonato europeu de atletismo.
Sem desprimor para o atletismo, é contudo incontornável que foi a conquista
futebolística a mobilizar o país. E assim aconteceu porque este jogo e esta
vitória representam, em termos simbólicos, mais do que a conquista de um
título. Isso mesmo foi reconhecido pela mais alta figura do Estado português:
instado a comentar a importância da vitória no Euro2016, em Paris, contra a
seleção anfitriã, Marcelo Rebelo de Sousa fez uma referência velada à “dura
experiência dos emigrantes portugueses em França”.
Escondida nas entrelinhas de tal referência estava,
claramente e para quem quisesse ouvir, um reconhecimento da virulenta e
insidiosa xenofobia sentida todos os dias pela comunidade portuguesa naquele
país, desde a sua chegada nas grandes vagas migratórias de meados do século
passado, em fuga da miséria, da fome e da guerra que lhes oferecia o regime
fascista português. Desde essa altura, em que, com as suas malas de cartão,
emigrantes portugueses se concentraram em bidonvilles insalubres, aquela que é
hoje a segunda mais numerosa minoria em França tem uma história de décadas de
exploração e opressão.
O reconhecimento da experiência de tantos portugueses em
França é, todavia, algo totalmente negado no que diz respeito às minorias
não-brancas em Portugal. Pelo
contrário, o recente sucessodesportivo de tantos portugueses não-brancos está a
ser posto aoserviço da reprodução de narrativas mitológicas, descrevendo umpaís
multicultural e não-racista, que não existe nem nunca existiu, como as
nossas histórias e experiência quotidiana nos fazem questão de recordar
permanentemente.
Ao mesmo tempo, as celebrações do triunfo recuperam
referências culturais exaltando o passado dito glorioso dos “descobrimentos”,
que na verdade não corresponde senão a séculos de pilhagem colonial e imperial
dos nossos territórios de origem, e de redução dos nossos povos à
indignidade da escravidão. Como portugueses e imigrantes não-brancos residentes
em Portugal, de diversas origens, recusamos contribuir com o nosso silêncio
para esse branqueamento. Sim, reivindicamos orgulhosamente os triunfos de
atletas nos quais nos revemos e identificamos.
O nosso Portugal é o de Patrícia Mamona, de Pepe, de
Bruno Alves, de Eliseu, de Danilo, de João Mário, de Renato Sanches, de William
Carvalho, de Éder, de Nani e de Ricardo Quaresma – filhos e netos de criadas,
empregadas de limpeza, trabalhadores da construção civil. Um país que está
longe de corresponder à imagem idílica que dele tem vindo a ser feita nos
últimos dias. Um país cujo currículo educativo deprecia a população não-branca
(em particular os negros e os ciganos), relegando-a para o lugar do Outro,
selvagem e primitivo, nos manuais de História; um país que pratica o
terrorismo de Estado nos bairros periféricos de Lisboa, essas autênticas
colónias internas onde se concentram as populações não-brancas, nas quais
vigora um estado de exceção permanente, e onde uma polícia militarizada se
comporta como um exército ocupante levando a cabo, com total impunidade,
execuções extrajudiciais; um país que viu e vê nascer inúmeros filhos e
filhas de imigrantes, mas lhes nega a nacionalidade; um país que agora endeusa
Éder, mas que recentemente obrigou Renato Sanches a mostrar os papéis para
confirmar a sua idade; um país, cujo hino e bandeira celebram a conquista e a
vitória sobre os nossos antepassados.
Recusamo-nos a aceitar como inevitável a nossa posição de
subalternidade, e a ideia de que Portugal seja um país de brandos costumes. É
tempo de quebrar este pesado silêncio, e passar da celebração a um combate sem
tréguas, por um país que ofereça a todos os seus habitantes real igualdade de
oportunidades, incluindo a de participar em todas as esferas da sociedade.
Para lá de palavras, o combate ao racismo branco da
sociedade portuguesa exige medidas concretas. Nesse sentido, exigimos:
1. Medidas que garantam o acesso efectivo às esferas da
sociedade que nos permanecem vedadas. Não aceitamos que, das unidades de
saúde à função pública, passando pelos órgãos de comunicação social, escolas e
universidades, todos estes espaços permaneçam exclusivos a portugueses brancos;
2. A desmilitarização imediata da
polícia, e o fim imediato das operações do CIR (Corpo de Intervenção Rápida)
nos nossos bairros, como primeiro passo rumo à abolição total da PSP e
GNR, e sua substituição por mecanismos de garantia da segurança colectiva, baseados
nas comunidades;
3. Uma comissão de inquérito independente aos assassinatos
perpetrados pela policia;
4. A passagem do racismo a crime, público e com penas
tipificadas no Código Penal;
5. A exclusão de conteúdos racialmente discriminatórios dos
manuais escolares e do Plano Nacional de Leitura;
6. A reforma da Comissão para a Igualdade e Contra a
Discriminação Racial, no sentido de garantir a representação das comunidades
não-brancas e imigrantes;
7. Definição clara e inequívoca de práticas
discriminatórias, com critérios de avaliação e punição;
8. Direito à nacionalidade e cidadania plena para todos
os nascidos em Portugal, e para todos os habitantes no território nacional que
a requeiram;
9. O direito ao voto para todos os residentes em Portugal.
Queremos viver num país que respeite todos os seus
habitantes, que os reconheça a todos e todas por igual, e que permita o pleno
desenvolvimento do potencial de cada um. Estamos aqui para todos os combates
que for necessário travar para alcançar esse objectivo, usando todos os meios
ao nosso alcance. Ainda não conquistámos nada.