sábado, 1 de junho de 2024

Crime na Suécia - O elefante na sala


Apontada como um exemplo de integração de imigrantes e um dos países mais seguros do mundo, a Suécia transformou-se, nos últimos anos, num país que encabeça as estatísticas de crime. Em matéria de homicídios com armas de fogo, apenas é superada pela Croácia. A violação aumentou exponencialmente. Uma realidade que muito insistem ser apenas uma percepção de insegurança, não conformada pelas estísticas. Sondagens e trabalhos de investigação de jornalistas suecos trouxeram à luz do dia uma perspectiva diferente. Em matéria de crrimes sexuais, por exemplo, imigrantes de países do Médio Oriente surgem nas estatísticas com percentagens muito superiores daquelas que eram esperadas, atndendo ao facto de esses imigrantes serem uma minoria, em termos percentuais, em relação ao total da população sueca.

Em 1994, dos 314 homens detidos por violação, na Suécia, 79% nasceram na Europa, 21% nasceram fora da Europa e 50% eram estrangeiros, de acordo com a "Wikipedia". Em 2018, um programa de jornalismo investigativo da televisão sueca Uppdrag Granskning analisou o total de 843 processos judiciais dos cinco anos anteriores e descobriu que 58% de todos os condenados por violação e tentativa de estupro tinham origem estrangeira: 40% eram imigrantes nascidos no Médio Oriente e em África, com 45 jovens originais do Afeganistão a destacar-se como sendo o segundo país de nascimento mais comum dos autores de crimes sexuais, depois dos suecos.

Ao analisar apenas os casos de agressão por violação (sueco: överfallsvåldtäkt), ou seja, casos em que o perpetrador e a vítima não se conheciam anteriormente, 97 de 129 (75%) nasceram fora da Europa, com 40 por cento destes tendo estado na Suécia durante um ano ou menos.

Valores diferentes

Um  programa de investigação transmitido pelo canal de televisão SVT, adiantou que o número total de infractores, ao longo dos últimos cinco anos, foi de 843. Destes, 197 eram do Médio Oriente e do Norte de África, sendo 45 provenientes do Afeganistão e 134 da África Austral. “Deixamos muito claro no programa que uma pequena percentagem de pessoas vindas do estrangeiro são condenadas por violação”, disse o editor-chefe Ulf Johansson à BBC News.

O ex-policial Mustafa Panshiri, nascido no Afeganistão, salientou que os imigrantes afegãos trazem consigo atitudes em relação às mulheres e à sexualidade que colidem com os valores suecos relativos à igualdade. Os jornalistas de investigação da televisão sueca descobriram que, nos casos em que as vítimas não conheciam os agressores, a proporção de agressores sexuais nascidos no estrangeiro era superior a 80%. Em 2021, um estudo concluiu que dos 3.039 infractores com idades entre 15 e 60 anos condenados por violação, com mais de 18 anos de idade, no período de 2000 a 2015, 59,2% tinham origem imigrante e 47,7% nasceram fora da Suécia.

Portugueses contra imigração

Em Portugal, a maioria dos pequenos partidos defende o controlo da imigração. Os pequenos partidos que concorrem às eleições europeias defendem um maior controlo da imigração para a Europa, o combate às redes de tráfico humano e mais apoios a quem chega ao espaço da União Europeia (UE). Num debate televisivo em que a RTP juntou, recentemente, os nove partidos sem assento parlamentar, Rui Fonseca e Costa, do Ergue-te, foi a voz mais dissonante sobre o tema, considerando que "Portugal não precisa da maioria dos imigrantes extra-europeus que se encontram no país, incluindo os oriundos dos PALOP".

"Estão a ocupar os nossos empregos e as nossas casa", disse o candidato, defendendo a necessidade do país "promover a matriz cristã ocidental e apostar em políticas de natalidade e a fertilidade, para que os portugueses aumentem".

Pedro Ladeira, do Nós Cidadãos, considerou "inegável que a Europa precisa de imigrantes", e entende que devem "ser promovidas campanhas orientadas para uma imigração oriunda de países falem a mesma língua e tenham uma matriz judaico cristã.

Os muçulmanos vão tomar conta da Europa".

A Nova Direita e o ADN defenderam a importância do controlo da imigração e do combate às redes de imigração ilegal. Joana Amaral Dias, cabeça de lista do ADN, classificou as máfias da imigração, grupo no qual incluiu algumas Organizações Não Governamentais, "como lobos com pele de cordeiro", enquanto Ossanda Líber, da Nova Direita afirmou que a mensagem que está a ser passada é a de que "todos podem vir, porque não há controlo". Duarte Costa, do Volt, considerou essencial "combater a narrativa anti-imigração que prejudica as empresas, e criar soluções administrativas que respondam aos anseios dos imigrantes". Pelo RIR, a cabeça de lista Márcia Henriques, considerou que a legislação existente fosse aplicada a imigração não seria um problema em Portugal". "As regras existem, são é mal aplicadas, e o problema da imigração é a AIMA (Agência para a Integração Migrações e Asilo". O cabeça de lista do PTP, José Manuel Coelho afirmou que "o que faz afluir os imigrantes à Europa são a moeda e a qualidade de vida", acrescentando: "Isso acontece porque os países africanos são roubados pelas grandes empresas da UE e ficam pobres".

O maior número de refugiados por milhão de habitantes

Com base em 33 por cento da população (2017), 58 por cento dos suspeitos do total de crimes são migrantes. Em relação a homicídios, homicídio agravado e a tentativa de homicídio, os números são de 73 por cento, enquanto a proporção de roubos é de 70 por cento. As pessoas nascidas na Síria constituíam o maior grupo da população estrangeira da Suécia em 2023. Quase 200.000 pessoas nascidas na Síria viviam na Suécia em 2023. Os iraquianos constituíam o segundo maior grupo de cidadãos nascidos no estrangeiro, seguidos pelo país vizinho da Suécia, a Finlândia .

A categoria de crime mais comum entre os crimes ligados a um suspeito em 2023 foram os crimes contra as pessoas, que constituíram 26 por cento do total. Outros crimes comuns foram a Lei dos Crimes contra os Estupefacientes (20%), Furtos e Roubos (10%) e a Lei dos Crimes contra as Infracções de Trânsito Rodoviário (9%). A categoria de crime mais comum entre os crimes processados ligados a um suspeito em 2023 foram os crimes contra as pessoas, que constituíram 26 por cento do total.

A Suécia tem a maior percentagem de imigração de refugiados por milhão de habitantes na Europa. O número de requerentes de asilo que chegam à Suécia aumentou a partir de 2014. Um total de 81.300 solicitaram asilo em 2014, o que representou um aumento de 50% em comparação com 2013. A Alemanha relatou o maior número total de imigrantes (2,1 milhões) em 2022, seguida pela Espanha (1,3 milhões), França (0,4 milhões) e Itália (0,4 milhões). Estocolmo é a maior cidade e também a capital da Suécia. Acontece que é também o maior aglomerado de imigrantes na Suécia, contendo cerca de 63 por cento do total de imigrantes no país.

Mesmo os que se auto-classificam como pertencentes à esquerda do espectro político, 1/3 apoia a suspensão da imigração. De acordo com uma sondagem Yougov em 2018, a maioria dos habitantes de sete países europeus inquiridos opôs-se a aceitar mais migrantes: Alemanha (72%), Dinamarca (65%), Finlândia (64%), Suécia (60%), Reino Unido (58% ), França (58%) e Noruega (52%).

“Campeões” da taxa de homicídios

Em 2021, descobriu-se que a Suécia tinha a segunda maior taxa de homicídios com armas de fogo (depois da Croácia) entre os 22 países europeus pesquisados. A taxa de mortalidade por crimes com armas de fogo na Suécia é agora a mais alta da União Europeia. Cerca de 62 mil pessoas estão ligadas a redes criminosas no país, diz a polícia. A maior parte da violência é resultado de guerras de gangues, com cada vez mais grupos competindo por território e pelo lucrativo comércio de narcóticos.

As pessoas nascidas na Síria constituíam o maior grupo da população estrangeira da Suécia em 2023. Quase 200.000 pessoas provenientes da Síria viviam na Suécia em 2023. Os iraquianos constituíam o segundo maior grupo de cidadãos nascidos no estrangeiro, seguidos pelo país vizinho da Suécia, a Finlândia.

A maior parte do aumento está relacionada com a violência de gangues em áreas vulneráveis na Suécia, que são áreas com taxas de criminalidade mais elevadas, baixos rendimentos e educação, e uma grande população imigrante. Um total de 85 por cento da população da Suécia (com idades compreendidas entre os 16 e os 84 anos) acredita que o número de crimes na Suécia aumentou nos últimos três anos. Este é um aumento verificado desde 2022, quando a proporção era de 80 por cento. Foi possível observar uma diminuição entre 2007 e 2014, mas com algumas variações anuais.

A guerra mortal de gangues na Suécia

Num parque de estacionamento num subúrbio da Suécia, Adam revela quanto dinheiro pode ser ganho disparando sobre alguém, numa entrevista à Sky News. “Se você disparar para a perna de alguém, receberá 50 mil coroas (3.700 libras)”, diz ele. "Antes, se você fosse matar alguém, ganhava um milhão de coroas (76 mil libras) - mas agora os preços são tão baixos que toda a gente mata." Um jovem com pouco mais de 20 anos, Adam faz parte de uma gangue desde os nove anos.

Cobre o rosto para proteger a sua identidade - deixando apenas os olhos à mostra - e dá respostas concisas às perguntas que lhe fazem. “Não estou preocupado com a minha própria segurança, porque eliminei quase toda a gente”, afirma. Admite que cometeu uma série de crimes e esteve na prisão várias vezes.

“Já vi muita merda acontecer”, diz Adam, residente na cidade de Uppsala. "Já vi pessoas a levarem tiros. Já vi pessoas morrerem, pessoas que foram feridas, mães a chorar, desesperadas. Já vi quase tudo, mas não há nada que se possa fazer a respeito disso." Adam faz parte de uma onda de violência de gangues que chocou a sociedade sueca e transformou o país com reputação de nação segura e pacífica num foco de homicídios.

Dois “coelhos” para um “trabalho”

A taxa de mortalidade por crimes com armas de fogo na Suécia é agora a mais alta da União Europeia. Cerca de 62 mil pessoas estão ligadas a redes criminosas no país, diz a polícia. A maior parte da violência resulta da guerra de gangues, com cada vez mais grupos a competirem por território e pelo lucrativo comércio de narcóticos. Para gangsters como Adam, isto representa uma oportunidade de negócio. Estima que ganhou dois “coelhos” (gíria para um milhão de coroas suecas) por aceitar determinados trabalhos. Isso equivale a cerca de 150.000 libras – mas essas recompensas financeiras trazem riscos.

Uma semana antes, diz, um gangue rival veio atrás dele, mas os supostos assassinos não foram muito longe. “Os outros rapazes estavam lá e apanharam-nos”, diz Adam. "Eu sei quem está por trás disso, mas eles acabaram. Eles não estão mais aqui.” Adam resignou-se a uma vida de crime, refere a reportagem da Sky News. Os laços que forjou com os seus companheiros de gangue são demasiado fortes. “Eu, pessoalmente, nunca irei embora”, diz. “Não me vejo a fazer parte de um gangue, vejo como se estivesse numa família.”

Uma resposta mais dura.

“Pela quantia certa de dinheiro eles estão dispostos a arriscar uma sentença de prisão perpétua”, diz Adam. O governo de centro-direita da Suécia anunciou recentemente a primeira estratégia nacional do país para combater o crime organizado – uma série de propostas destinadas a esmagar os gangues. Já está a ser discutida uma legislação que permitirá a prisão de adolescentes a partir dos 15 anos.

Em 2022, quase metade dos suspeitos de homicídios relacionados com armas de fogo tinham entre 15 e 20 anos. “As pessoas aqui não se importam com a punição. Pela quantia certa de dinheiro, estão dispostas a arriscar uma sentença de prisão perpétua”, diz. Adam dá de ombros antes de ir embora. A avaliação sombria do jovem é apoiada pelas estatísticas. Em 2021, 363 tiroteios registados causaram 53 mortes em toda a Suécia, segundo a polícia. Em 2022, a taxa de homicídios com armas de fogo em Estocolmo era cerca de 25 vezes maior do que em Londres. Os gangues suecos querem matar – e não lhes faltam armas.

 Emigração e Crime / Paulo Reis

O crioulo como língua oficial?

  

O site Buala é um site muitointeressante, com uma qualidade fora de série, dedicado às questões e problemas das comunidades africanas residentes em Portugal e não só. Merece uma leitura atenta aos inúmeros artigos que analisam uma realidade social, cultural e política bem presente no nosso país. Mas também não foge às polémica e controvérsias, próprias de um inter-relacionamento entre comunidades distintas, do ponto de vista social, cultural e políticas. Reproduzimos aqui um dos textos publicados no "Buala", onde se levantam questões polémicas mas sigificantes, nos dias de hoje.

xxxxxxxxxxxxxx

Reparações? As omissões, os portões trancados da revolução e a petrificação dos cravos

Apolo de Carvalho

Se é facto que “Abril abriu novas portas”, por onde muitos adentraram, é válido então perguntar: quem são esses que ainda se encontram à entrada, barrados e sistematicamente controlados? A quem se destinam de facto, as tão celebradas “promessas de Abril”?

Se é mesmo verdade que “Abril abriu novas portas”, interessa saber se terá igualmente fechado as suas portas velhas. As velhas e mórbidas, as portas do império, do colonialismo, do lusotropicalismo, do fascismo e do racismo. Quandoouço “25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!” olho consternadopara as bancadas da Assembleia da República. 50 anos de Abril, 50deputados racistas e fascistas sentados à mesa, na casa do povo quemais ordena.

É verdade que Abril chegou, mas carregando todo um conjunto de heranças de um Portugal que quis (e quer) ser grande à custa de vidas outras. Um Portugal que ainda sonha com tempos de outrora quando ditava as regras em territórios alheios, dizendo quem podia ser, existir, estar, pertencer.

Pedras para reabilitar ridículas estruturas coloniais

Um Portugal que continua a manter parte da sua população nas penumbras da história, confinados, restringidos a uma vida indigna e injusta. Um Portugal que renega os seus próprios nacionais a não ser que tenham qualidades excepcionais e saibam manter uma performance de excelência. Sobre isto, e faço aqui um parênteses, o futebol ensina muita coisa, na medida em que nos faculta genuínos retratos sociais, revelando de forma crua, a hipocrisia deste país. Vem-me à mente o nome de Éder.

O Portugal que antes dizia: “Nem mais um soldado para as colónias”, é o mesmo que hoje reclama pedras e mais pedras para reabilitar ridículas estruturas coloniais. O jardim da Praça do Império foi reabilitado praticamente às vésperas das comemorações dos 50 anos da “revolução”. Este Portugal que todos os anos, no 25 de Abril, exibe cravos na lapela, é o mesmo onde o hino e a bandeira nacionais são mantidos intactos e intocáveis pelos guardiões da memória quinhentista.

O Tarrafal, o campo da morte lenta

Não é irónico que um cidadão português, negro, que não se revê nesses símbolos nacionais, usufruindo da (suposta) liberdade de Abril, para tecer críticas seja judicialmente condenado a pagar uma multa ? Pois é. O artigo 332 do código civil diz o seguinte: “Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.

Ora, também no tempo da PIDE, havia coisas assim, escritas na lei, que restringiam a liberdade e erigiam o cidadão “revoltoso” à condição de criminoso. O colono que não prestava juramento à bandeira portuguesa, era um traidor do Estado. Criticar o Estado colonial e fascista, levou muitos ao terrível campo de morte lenta, Tarrafal.

Este “Portugal dos Pequenitos” que fala de irmandade e de conexões lusófonas (uma caricatura da falhada solução federalista”) é o mesmo que se descreve a si mesmo nos manuais escolares como civilizador, e os outros como “coisas a civilizar”.

O crioulo como língua nacional

E o que dizer da marcha do 25 de Abril que tem início na Avenida da “Liberdade” onde repousa a estátua do grande patriarca Marquês de Pombal? O Tupi, uma das línguas do Brasil, foi arrasado pela política linguística pombalina. Faço mais um parênteses: A língua cabo-verdiana que, em tempos, sofreu ataques por parte do poder colonial, continua ainda relegada às margens, não obstante a sua pujança e vitalidade no tecido social português. Para quando o seu reconhecimento como língua nacional à semelhança do mirandês? Voltando ao Marquês de Pombal, o suposto “abolicionista” terá afinal exercido um “humanismo” bastante parcial e utilitarista, ao desviar o comércio escravocrata para o Brasil. No contexto dos 50 anos do 25 de abril, Marcelo Rebelo de Sousa que, em Gorée, omitiu esse facto, voltou a falar da escravatura e da colonização, afirmando que Portugal tem o dever de pagar reparações.

As reparações não são mediáticas

As discussões sobre as reparações no mundo têm um longa história, e prática. Em Portugal, num período mais recente, foram levadas a cabo pela então deputada Joacine Katar Moreira à Assembleia da República Portuguesa, mas parece que só agora, devido às declarações de Marcelo, o país e todo o mundo (branco) tem algo a dizer. O que não deixa de ser irónico quando este mesmo Presidente associou a lentidão aos orientais. E, de repente, todos temem e se indignam, apressando-se a demonstrar o quão ridículo é falar hoje de reparações. Nada surpreendente para um país que se diz herói do mar e clama uma imortalidade imaginada a partir das invasões e dos massacres. Que este tipo de discussões estejam a acontecer no contexto do cinquentenário do fim da ditadura do Estado Novo (talvez seja o termo mais interessante que revolução), informa-nos muito sobre as continuidades coloniais que estão empenhadas nas instituições, é certo, mas também nas mentes e nos corações dos portugueses supostamente “de bem”.

O poder de exigir e de obter.

O debate das reparações é complexo. Longe de ser um mero tema mediático ou discurso político-académico, é (deveria ser) uma acção que envolve muita gente, lugares, contextos e temporalidades. Não se trata de uma agenda que “Portugal deve liderar”, como diz o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Existem várias dimensões, sobretudo geopolíticas que exigem dos “danados” uma agência e protagonismo inegociáveis. Por outras palavras, é preciso poder. O poder de exigir e de obter. Fora disto estaremos apenas a “apelar, ingenuamente, ao coração dos opressores”. No início deste ano, realizou-se uma conferência no Porto sobre a questão das reparações. Do encontro, resultou um documento intitulado “Declaração do Porto: Reparar o Irreparável” com 20 propostas concretas que resumem reivindicações de longa data dos movimentos e pessoas negras em Portugal. São pautas que muita gente terá considerado mirabolantes, descabidas, irrealizáveis. Para quem os colocou em papel, manifestam pelo contrário, o poder de reivindicar sem fazer concessão. O mesmo poder que tem colocado movimentos sociais como Vida Justa nas ruas, exigindo melhores condições de vida mormente em termos de salário, habitação e saúde, para as pessoas dos bairros precarizados.

Uma sociedade cínica que mente a si própria.

Reparar passa por colocar no topo da agenda política as exigências deste tipo de organizações de base. Reparar passa também por dar um rosto mais de abril aos espaços públicos na medida em que, neste Portugal da mitomania, em que a negação é política de Estado, proliferam espaços de violência simbólica e histórica.

Este é um país com uma sociedade cínica que, a cada 25 de Abril, mente, e mente a si própria. São tantas as hipocrisias e tantas as contradições que os milhares de cravos que circulam pelas ruas já nem cheiram a flor, petrificaram!

O que significa diz er que o 25 de Abril nasceu em África? Quem são os combatentes anónimos do 25 de Abril? Em Abril de 2023, numa apresentação em Lisboa, a artista batukadeira Ilda Vaz das Bandeirinhas pan-africanistas da Boba, face a uma plateia maioritariamente branca, perguntava: O 25 DE ABRIL NASCEU ONDE? Nós, que lá estivemos, respondemos em uníssono: África, cientes de que o 25 de Abril é “uma festa incompleta” enquanto não se reconhecer esta verdade.

Os combatentes anónimos da causa da ONU

Afirmar que o 25 de abril nasce em África não tem nada de pretensioso. Significa, sim, que há verdades a serem escurecidas e reparações históricas ainda a serem feitas. Significa que, na Guiné-Bissau, o PAIGC e o povo lutaram para que houvesse Abril. Mais do que isso, significa que, em África, as lutas foram pela libertação TOTAL e essa totalidade incluía tanto o colonizado como o colono (como diria Fanon). Em 1971, num potente discurso pronunciado na Assembleia das Nações Unidas, Cabral afirmava: “Nós somos os combatentes anónimos da causa da ONU”. Para Cabral - cuja ausência no Portugal de hoje mostra a incompletude do 25 de Abril - a luta do PAIGC visava defender os valores fundamentais da humanidade. Valores esses que, curiosamente, Portugal e toda a Europa sempre afirmaram ser os legítimos herdeiros. Valores celebrados em 25 de Abril.

Sim, o povo guineense e o PAIGC lutaram por todos nós. São os combatentes anónimos da Revolução dos Cravos. Ao lutar contra o colonialismo que os oprimia estavam a lutar também por Portugal, pelos portugueses e pelo mundo. Porque a sua noção de liberdade era a de um universalismo “verdadeiramente universal”. E é esta a particularidade da luta dos povos oprimidos. São lutas cuja contextualidade não exclui a sua universalidade. São lutas destinadas a fazer tremer as bases de todos os sistemas-mundo opressivos.

O desaparecimento do colonialismo

Dizer que o 25 de Abril nasceu em África significa reconhecer que o colonialismo e o fascismo foram efectivamente derrotados e destruídos, mas não extinguidos. Dos escombros e das “latas de lixo da história” podem sempre ressurgir todo o tipo de monstros. “Le ventre est encore fécond, d’où a surgi la bête immonde”, relembra-nos Brecht. Aliás, a propósito, Cabral já dizia que o desaparecimento de Salazar não significaria o desaparecimento do colonialismo [ nem do fascismo]. O crescimento da extrema-direita em Portugal e em toda a Europa e as várias continuidades coloniais, mostram o quão acertada é esta afirmação.

Dizer que o 25 de Abril nasceu em África é também um lembrete e uma mensagem de esperança. Informa-nos de que o chão africano é fértil em lutas por liberdades e é de África que saem as grandes lutas pelo futuro da humanidade. Os espíritos revolucionários africanos não cessam de inspirar e contagiar o mundo. Isto é também um conselho aos movimentos negros da diáspora de que a “reafricanização dos espíritos” é um outro sinónimo do mote pan-africanista “back to África”. Tal como a descolonização, o retorno é um movimento, uma virada, uma nova mirada, um projecto político e epistemológico (e não um mero ato migratório como infelizmente, muito se pensa).

Os cravos e os jardins das "casas" portuguesas

“O 25 de abril nasceu em África” é, sobretudo, uma afirmação política que coloca África e os africanos no centro de conquistas, cuja participação não lhes é reconhecida. É outra forma de dizer que: Sabemos! Não nos esquecemos! Importa ainda lembrar que os trabalhadores e as trabalhadoras africanas em Portugal, assim como todo o movimento negro, têm sido os guardiões, os cuidadores, os combatentes permanentes, das liberdades de abril… ainda que sistematicamente excluídos.

Dizer que o 25 de Abril nasceu em África é relembrar uma dívida ainda por pagar em Portugal cujas colónias internas, bem antes do 25 de Abril de 1974, já tinham as suas zonas libertadas, estas Áfricas daqui onde a luta que hoje é celebrada foi também imaginada. Uma batucadeira, empregada de limpeza, perguntou O 25 DE ABRIL NASCEU ONDE e a sua indagação fez justiça a milhares de combatentes anónimos da revolução.

No contexto dos 50 anos do 25 de Abril, marcados pelo avanço do racismo, da xenofobia e da negação enquanto política de Estado, o desafio ficou lançado. Pergunta-te Portugal! Quiçá nas perguntas nos encontremos… num Abril diferente sem capitães nem guardiões. Um Abril de portas escancaradas, ou melhor ainda, sem portas. Porque, afinal, as flores da revolução não crescem em vasos nem nos jardins de uma outra “casa portuguesa”.

As flores da revolução são espécies fugitivas que invadem as ruas, procurando os matos, as florestas e territórios mais fecundos à vida. São flores que brotam nas fissuras abissais e na terra batida das “zonas de não ser”, espaços segregados onde habitam aqueles que dizem não! e “que recusam o esquecimento como método”, aqueles que polemizam os vales da morte, e conhecem a arte do enraizamento e do desabrochamento.

Que, sob a tumba dos combates anónimos, brotem cravos, lilases e jasmins de todas as cores. Não há revolução sem reparação! 

Opinião / Site Buala


 

Mamadou Ba: Da celebração ao combate

 

Um texto interessante e racista, da autoria de Mamadou Ba e de um grupo de activistas africanos. O texto é uma petição pública, que está publicada no site das petições públicas, com um número reduzido de assinaturas de apoio: 164, apenas.

Da Celebração ao Combate

Para: Ao Ex.mo Senhor Presidente da República; À Assembleia da República, Governo e Partidos Políticos

As recentes conquistas desportivas nacionais têm vindo a ser usadas para a reprodução de mitos sobre a multiculturalidade e harmonia inter-racial do Portugal contemporâneo. Como portugueses não-brancos, e imigrantes não-brancos residentes em Portugal, recusamos ser cúmplices desse branqueamento.

O dia 10 de julho de 2016 ficará para a história do desporto português. Pelo triunfo da seleção no europeu, e pelas medalhas (uma de ouro, duas de bronze) conquistadas no campeonato europeu de atletismo. Sem desprimor para o atletismo, é contudo incontornável que foi a conquista futebolística a mobilizar o país. E assim aconteceu porque este jogo e esta vitória representam, em termos simbólicos, mais do que a conquista de um título. Isso mesmo foi reconhecido pela mais alta figura do Estado português: instado a comentar a importância da vitória no Euro2016, em Paris, contra a seleção anfitriã, Marcelo Rebelo de Sousa fez uma referência velada à “dura experiência dos emigrantes portugueses em França”.

 Escondida nas entrelinhas de tal referência estava, claramente e para quem quisesse ouvir, um reconhecimento da virulenta e insidiosa xenofobia sentida todos os dias pela comunidade portuguesa naquele país, desde a sua chegada nas grandes vagas migratórias de meados do século passado, em fuga da miséria, da fome e da guerra que lhes oferecia o regime fascista português. Desde essa altura, em que, com as suas malas de cartão, emigrantes portugueses se concentraram em bidonvilles insalubres, aquela que é hoje a segunda mais numerosa minoria em França tem uma história de décadas de exploração e opressão.

O reconhecimento da experiência de tantos portugueses em França é, todavia, algo totalmente negado no que diz respeito às minorias não-brancas em Portugal. Pelo contrário, o recente sucessodesportivo de tantos portugueses não-brancos está a ser posto aoserviço da reprodução de narrativas mitológicas, descrevendo umpaís multicultural e não-racista, que não existe nem nunca existiu, como as nossas histórias e experiência quotidiana nos fazem questão de recordar permanentemente. 

Ao mesmo tempo, as celebrações do triunfo recuperam referências culturais exaltando o passado dito glorioso dos “descobrimentos”, que na verdade não corresponde senão a séculos de pilhagem colonial e imperial dos nossos territórios de origem, e de redução dos nossos povos à indignidade da escravidão. Como portugueses e imigrantes não-brancos residentes em Portugal, de diversas origens, recusamos contribuir com o nosso silêncio para esse branqueamento. Sim, reivindicamos orgulhosamente os triunfos de atletas nos quais nos revemos e identificamos. 

O nosso Portugal é o de Patrícia Mamona, de Pepe, de Bruno Alves, de Eliseu, de Danilo, de João Mário, de Renato Sanches, de William Carvalho, de Éder, de Nani e de Ricardo Quaresma – filhos e netos de criadas, empregadas de limpeza, trabalhadores da construção civil. Um país que está longe de corresponder à imagem idílica que dele tem vindo a ser feita nos últimos dias. Um país cujo currículo educativo deprecia a população não-branca (em particular os negros e os ciganos), relegando-a para o lugar do Outro, selvagem e primitivo, nos manuais de História; um país que pratica o terrorismo de Estado nos bairros periféricos de Lisboa, essas autênticas colónias internas onde se concentram as populações não-brancas, nas quais vigora um estado de exceção permanente, e onde uma polícia militarizada se comporta como um exército ocupante levando a cabo, com total impunidade, execuções extrajudiciais; um país que viu e vê nascer inúmeros filhos e filhas de imigrantes, mas lhes nega a nacionalidade; um país que agora endeusa Éder, mas que recentemente obrigou Renato Sanches a mostrar os papéis para confirmar a sua idade; um país, cujo hino e bandeira celebram a conquista e a vitória sobre os nossos antepassados.

Recusamo-nos a aceitar como inevitável a nossa posição de subalternidade, e a ideia de que Portugal seja um país de brandos costumes. É tempo de quebrar este pesado silêncio, e passar da celebração a um combate sem tréguas, por um país que ofereça a todos os seus habitantes real igualdade de oportunidades, incluindo a de participar em todas as esferas da sociedade.

Para lá de palavras, o combate ao racismo branco da sociedade portuguesa exige medidas concretas. Nesse sentido, exigimos:

1. Medidas que garantam o acesso efectivo às esferas da sociedade que nos permanecem vedadas. Não aceitamos que, das unidades de saúde à função pública, passando pelos órgãos de comunicação social, escolas e universidades, todos estes espaços permaneçam exclusivos a portugueses brancos;

2. A desmilitarização imediata da polícia, e o fim imediato das operações do CIR (Corpo de Intervenção Rápida) nos nossos bairros, como primeiro passo rumo à abolição total da PSP e GNR, e sua substituição por mecanismos de garantia da segurança colectiva, baseados nas comunidades;

3. Uma comissão de inquérito independente aos assassinatos perpetrados pela policia;

4. A passagem do racismo a crime, público e com penas tipificadas no Código Penal;

5. A exclusão de conteúdos racialmente discriminatórios dos manuais escolares e do Plano Nacional de Leitura;

6. A reforma da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, no sentido de garantir a representação das comunidades não-brancas e imigrantes;

7. Definição clara e inequívoca de práticas discriminatórias, com critérios de avaliação e punição;

8. Direito à nacionalidade e cidadania plena para todos os nascidos em Portugal, e para todos os habitantes no território nacional que a requeiram;

9. O direito ao voto para todos os residentes em Portugal.

Queremos viver num país que respeite todos os seus habitantes, que os reconheça a todos e todas por igual, e que permita o pleno desenvolvimento do potencial de cada um. Estamos aqui para todos os combates que for necessário travar para alcançar esse objectivo, usando todos os meios ao nosso alcance. Ainda não conquistámos nada.

Racismo/ Opinião (Mamadou Ba)

 

sexta-feira, 31 de maio de 2024

O Insubmisso e a “Face Oculta”

  

“O Insubmisso - Memórias de um Polícia” oferece uma narrativa empolgante de três grandes operações policiais: Apito Dourado, Face Oculta e Aveiro-Connection.
Neste livro, como refere a página da editora Guerra e Paz, fica-se a saber como evoluiu o combate à corrupção política, desportiva ou militar. Teófilo Santiago foi o polícia, insubmisso, responsável por essas investigações criminais. As suas memórias são contadas neste livro, na primeira pessoa, num percurso cruzado com o jornalista Eduardo Dâmaso.

As investigações de Teófilo Santiago foram as primeiras a incomodar poderes simbolizados em Pinto da Costa, José Sócrates, Valentim Loureiro, Oliveira e Costa, Armando Vara. Santiago foi, afinal, o homem que mandou Vara para a prisão. Neste livro, entra-se no mundo do crime, do tráfico de droga, ou nos bastidores de escândalos como as escutas de Sócrates, o processo PT/TVI, as interferências do governo de Durão Barroso, a prisão de Pedro Caldeira.

A destruição das escutas de Sócrates

Mas outros pormenores mais interessantes surgem numa entrevista numa com o co-autor do livro, o jornalista Eduardo Dâmaso. “No decorrer da investigação relativamente às empresas do Grupo Godinho surgiram-nos outras situações, nomeadamente o processo de aquisição ou tentativa de aquisição da TVI e de outros órgãos de Comunicação Social – e o que se passou neste caso, refere Teófilo Santiago, foi “uma investigação à qual cortaram as pernas. O então Procurador Geral da República, Pinto Monteiro, considerou que não existiam indícios de crime e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, ordenou a destruição das 11 escutas que envolviam Sócrates. Foi o que aconteceu em 2011”, adianta Teófilo Santiago.

“Estava a ser desenvolvido um plano tentacular para controlar e limitar a liberdade de Imprensa e a liberdade de expressão”, adianta Eduardo Dâmaso. “Se o Teófilo e a sua equipa não têm sido impedidos de investigar este processo, se calhar tínhamos conhecido mais cedo, e em circunstâncias um pouco diferentes, aquilo que viemos depois a saber na história do processo Marquês”, afirma o jornalista.

Campanha suja

Mas o ex-inspector, crachat de ouro da PJ – a mais alta condecoração daquela unidade policial - tem mais alguns pormenores interessantes, reveladas numa síntese do livro, feito pelo Correio da Manhã de dia 29 de Maio. Sócrates tentou plantar conversas para descredibilizar a investigação do caso 'Face Oculta'

No livro ‘Insubmisso’, o antigo inspector Teófilo Santiago recorda aquilo que apelida de uma “campanha suja”, escreve a jornalista Ana Isabel Fonseca, num peça publicada no passado dia 29 de Maio. Nesta síntese do livro, refere-se que foram inúmeras as acusações e os obstáculos que se levantaram após José Sócrates ter surgido em 2009 nas escutas do caso ‘Face Oculta’. No livro “Insubmisso” o antigo inspector Teófilo Santiago recorda aquilo que apelida de uma “campanha suja”.

As conversas interceptadas revelavam que o primeiro-ministro pretendia controlar a comunicação social. “Desde as hipotéticas violações do segredo de Justiça até às acusações gravíssimas sobretudo pela posição que os 'agressores' ocupavam na vida judicial e política, de que a equipa investigadora e os magistrados teriam agido na ilegalidade. Tudo disseram, sem qualquer espécie de travão. Acusaram-nos de ter feito "espionagem política", seja lá o que isso for ”, conta o ex-director da PJ de Aveiro.

Grave ataque

Eduardo Dâmaso, jornalista e co-autor do livro, lembra que tudo foi feito para tirar Sócrates do processo. Considera que foi o mais grave ataque feito à separação de poderes em 50 anos de democracia. “A verdade é que neste caso não havia conspiração nenhuma - ou espionagem, como lhe chamaram figuras tão relevantes do PS, em particular o então ministro Vieira da Silva. Pelo contrário, parece ter havido espionagem contra os protagonistas da investigação e jornalistas”, lembra Eduardo Dâmaso, que destaca a condenação de Armando Vara a cinco anos de prisão por favorecer as empresas de Godinho. “Ficou Armando Vara para prova de que a impunidade total nem sempre está assegurada e que ainda há gente com coragem e saber na defesa de alguns valores próprios do Estado de Direito Democrático”, lê-se no livro.

A obra - apresentada esta semana na Feira do Livro de Lisboa - revela que Sócrates soube que estava a ser escutado. Foi depois plantada uma conversa entre Rui Pedro Soares e Paulo Penedos. “Nesta conversa de forma inábil e atrapalhada tentaram desdizer e tirar credibilidade a dezenas de conversas, onde se referiam de forma clara e inequívoca à trama que estavam a urdir e aos objectivos a atingir. O «pai» desta ideia foi o Dr. Paulo Bernardino, um antigo quadro superior da PJ e meu colega”, salientaTeófilo Santiago.

Notícias / Paulo Reis

 

As escutas de Bugalho (I)

 

Entre as escutas telefónicas da PJ no âmbito do processo de investigação da troca de favores políticos envolvendo deputados, autarcas do PSD e o então presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, foi gravado um telefonema entre Carlos Reis (deputado do Partido Social-Democrata e visado no mesmo processo) e Sebastião Bugalho no qual o empresário pediu o NIB ao comentador porque tinha "uma loja para despachar". Bugalho responde por sms: "O que me pediste, primo". Numa escuta posterior, Carlos Reis pergunta a Bugalho, num sms: "Confirmaste recepção da massa?" Bugalho responde: "Sim, confirmado." A troca de sms termina com uma frase de Carlos Reis: "Ótimo! Recibos antigos amigos, n esqueças pf" - sem entrar em mais pormenores.

A 3 de janeiro de 2018 a PJ pediu a quebra do sigilo bancário da conta de Bugalho colocando a hipótese de "Carlos utilizar a conta do primo para esconder movimentos bancários".

Depois da situação ter sido tornada pública, Sebastião Bugalho garantiu à Sábado que não é primo de Carlos Reis e justificou o envio do dinheiro: "No final de 2017, Carlos Eduardo Reis viajou do Norte para Lisboa, onde nos encontrámos. Conversámos como habitual sobre política (era o meu trabalho). Quando nos despedimos, já tarde, deu pela falta da sua carteira, que havia esquecido em casa, no Norte. Perante isto, fui à caixa de Multibanco mais próxima e emprestei a quantia necessária para o seu regresso a casa (gasolina, portagens, etc.). Pareceu-me, à data, o gesto mais correto e decente. Dias mais tarde, o mesmo procedeu à devolução da exacta quantia por transferência e confirmou-o por SMS. Julgo que nem um nem outro tínhamos algo a esconder, sendo que ambos os movimentos podem ser confirmados pelo meu extracto bancário, cujo historial requisitei assim que fui contactado pela revista Sábado".

A 3 de janeiro de 2018 a PJ pediu mesmo a quebra do sigilo bancário da conta de Bugalho colocando a hipótese de "Carlos utilizar a conta do primo para esconder movimentos bancários".

PAULO REIS

Uma casa portuguesa, com certeza...

Tal como muitas crianças que cresceram à sombra do Estado Novo, as aulas de catequese eram uma obrigação. Tínhamos livros especiais, onde se explicava como funcionava a trilogia Deus, Pátria e Autoridade. Costumava folhear avançadamente esses livros, com a curiosidade própria da minha idade. Mas houve duas imagens que abalaram as minhas convicções e a minha crença na infalibilidade da trilogia estatal. Numa dessas imagens, via-se um navio meio-adornado, quase a afundar-se, com uma legenda: “A soberba é sempre castigada”. O nome do navio era visível, junto à proa: “Titanic”. Durante alguns anos, interroguei-me sobre qual seria a ligação entre um pecado mortal e um navio a ir ao fundo. Andei na Mocidade Portuguesa, a partir da 3ª classe. Tínhamos um uniforme parecido com o da Juventude Hitleriana: camisa verde e calções castanhos, ligados por um cinto com um “S” que logo nos ensinavam ter três significados: “Salazar, Serviço e Sacrifício”. Mas lá por casa havia livros por todo o lado, e muitas espécies de livros, porque o meu pai era um leitor compulsivo. E eu comecei a tentar econtrar, nalguns desses livros, informção que me esclarecesse as minhas dúvidas.

Um dia perguntei ao meu pai o que era o Titanic. Ele explicou-me, pormenorizadamente, que tinha sido uma das grandes tragédias dos tempos modernos, quando um navio que todos diziam ser impossível afundar, colidiu com um icebergue e naufragou, morrendo largas centenas de pessoas. Fiquei calado, a tentar vislumbrar qual o sentido de considerar uma tragédia como sendo uma manifestação de soberba.

Outra imagem que me marcou, nesses livros de catequese, retratava uma típica família portuguesa: a mãe à porta de casa, com um filho nos braços e outro agarrado às saias, com a figura do pai visível a poucos metros, a afastar-se. Ia de enxada ao ombro e descalço – tal como a mãe. Eu teria uns sete ou oito anos e aquela imagem espantou-me. Nascido em Angola, não me lembrava de ter visto, nunca, um branco descalço. Só os negros é que andavam descalços. Foram dois episódios que me marcaram, pelo seu absurdo e pela minha dificuldade em entender aqueles paradoxos – o navio Titanic, a ser considerado um exemplo de luxúria e soberba e a família branca, típica de uma aldeia portuguesa, descalça.

Foram precisos alguns anos para eu conseguir perceber o sentido daquelas duas imagens. Voltei a interrogar o meu pai, já com a certeza de que, nos meus dez, onze anos, ele não me recusaria uma explicação. E foi assim que fiquei a conhecer a tragédia do Titanic, uma tragédia longe dos ensinamentos religiosos que nos impingiam. O mistério da família de pés descalços foi-me esclarecido de forma mais dolorosa. Em Portugal, como me disse o meu pai, havia muitas famílias pobres, que não tinham dinheiro para comprar sapatos. 

E explicou-me que, a primeira vez que ele calçou um par de sapatos, foi para ir fazer o exame da 4ª classe. A professora era uma velha solteirona, dura e seca, que autorizava os alunos a virem descalços para a escola, mesmo quando se realizavam os exames da 1ª à 3ª classes, com uma excepção: no dia do exame da 4ª classe tinham que vir calçados ou não entravam. E foi assim que o meu pai calçou os primeiros sapatos da sua vida – uns sapatos emprestados por um primo de família mais abastada, três dedos maiores que o pé dele, de maneira que teve que atar um fio em cada um, para que os sapatos não lhe caíssem. 

Como era uma data para celebrar, o exame da 4ª classe, onde a maioria dos miúdos da aldeia não chegavam, a minha avó preparou-lhe um almoço especial: para além da habitual batata cozida, enrolada num papel, que era o seu almoço diário, conseguiu arranjar meia sardinha assada, para melhorar a refeição. Saídos os resultados, foi dia de festa, lá em casa. O meu pai tinha sido o melhor classificado da turma e essa classificação traçou-lhe a vida, pelos nos 20 anos seguintes. Por decisão do padre daquela paróquia e da professora, o destino dele foi decidido: como era o mais inteligente, ia para o seminário, para ser padre. E foi. Mas não chegou a ser padre...

Opinião / Paulo Reis  

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Rua do Benformoso: Nem formosa, nem segura


PAULO REIS

Conheci o T. numa noite de copos, no Bairro Alto. Era polícia à paisana, dedicado essencialmente ao combate ao tráfico de droga. Na mesa estava também um colega jornalista, que trabalhava na área do crime. Fiz-lhe algumas perguntas, curioso sobre o tema e trocámos telefones, para outra noite de copos.

Liguei-lhe uma semana antes de ir fazer um passeio pela rua do Bemformoso, para “cheirar” o que lá passava – e que seria interessante, pelas notícias e reportagens que ia lendo e vendo em diversos órgãos de Comunicação Social.

Pedi-lhe um retrato de como é que funcionavam as coisas, por ali. E era simples: indianos e paquistaneses dedicados ao tráfico de mão-de-obra e guineenses a controlar a venda de droga – essencialmente “crack”, o parente pobre da heroína. Barato – uma “pedra”, mais conhecida por “pipoca”, para consumo de uma pessoa, custa apenas 5 euros. Tem um efeito rápido, é extremamente viciante, mas o tempo de "pedrada" é curto.

Numa terça-feira pus-me a caminho. Cheguei pouco antes da hora do almoço e, para fazer “contacto”, logo no princípio da rua do Bemformoso, perguntei a um indiano com aspecto de “junkie”, se conhecia algum bom restaurante.

Embora fosse na direcção oposta à minha, fez questão de inverter caminho e levar-me ao restaurante. No trajecto, perguntou-me o nome e respondeu com o seu nome, também: Dierk, pareceu-me ouvir. Duzentos metros acima do início da rua indicou-me o “Taste of Lahore”. Foi comigo até à porta, obviamente para que o patrão percebesse que ele é que tinha angariado o cliente. Antes de nos despedirmos, pediu-me uma ajuda, perguntando se eu tinha algumas moedas. Vivia em Portugal há dois anos, mas estava sem trabalho, nem tinha dinheiro para pagar uma cama. Dei-lhe cinco euros, o que ele agradeceu efusivamente.

O restaurante de Lahore que não era de Lahore

No restaurante, veio o patrão falar comigo. Quando olhei para o menu, disse-lhe que aquilo eram pratos indianos. Ora, Lahore é uma cidade paquistanesa. Riu-se e não me soube dar qualquer explicação. Percebi que havia uma coisa fora da ementa: cerveja, que era algo que cairia bem no calor insuportável que se fazia sentir. “No beer, sir” - uma frase que ouvi repetida 30 ou 40 vezes, em tantos mini-mercados e restaurantes onde fui, durante dois dias. Depois reparei que, em todos os sítios onde se comia ou se faziam compras, como os mini-mercados, havia sempre a palavra “Halal” - “permitido, autorizado”, coisa que não acontecia com o álcool, “Haram”, proibido, fora da lei islâmica.

Tentei um primeiro contacto e perguntei ao patrão se conhecia algum sítio onde alugassem quartos, acrescentando que era turista e queria conhecer aquela zona. Disse enfaticamente que não conhecia nenhum sítio nem tinha amigos que conhecem.

Sem me dar desanimado, com esta primeira derrota, subi a rua do Bemformoso. O meu objectivo original era arranjar uma cama ou um quarto, numa daquelas casas onde habitavam nove ou dez imigrantes. Duas horas e dezenas de contactos depois, não tinha conseguido nada. Até a barbearias fui, sempre com mesma pergunta – um quarto para alugar – e com uma de duas respostas: alguns não conheciam nada, completamente, outros admitiam que conheciam mas estava cheio. Tudo obviamente falso, mas justificado por uma intrínseca desconfiança, um branco a perguntar por quartos naquela zona que, de turística não tem muito: um ou outro casal estrangeiro, de calções e t-shirt, de meia idade, com um ar perdido e mapa na mão, procurando sítios diferentes.

 

Uma guia contratada


Ia a meio da rua quando fui abordado pela M. Loira magrinha mas com uma cara bonita, o cabelo preso, num nó, no alto da cabeça e uma mini-saia que mais precia um cinto largo e que pouco deixava à imaginação. Soube depois que tinha apenas 24 anos, mas parecia ter mais.

Pediu-me umas moedas, não tinha dinheiro para comer. Dei-lhe dois euros e ela aproveitou para subir a parada: “Arranja-me mais três euros...” Percebi, pela conversa que tinha tido com o meu amigo polícia, que ela estava à procura do dinheiro suficiente para uma dose, cinco euros.

Propus-lhe um negócio: eu dava-lhe os cinco euros, mas ela servia-me de guia, para me mostrar a rua do Benformoso. Aceitou logo e subimos até uma esplanada no largo do Intendente. Perguntou-me se podia convidar uma amiga, para beber uma cerveja. Saiu e voltou, cinco minutos depois com a G. uma morena sorridente e bem-disposta, trinta e quatro anos, três filhos. Trocaram a parafernália necessária, a M. tinha cachimbo, mas não tinha “ferrinhos”. Perante a minha curiosidade, explicaram-me que os “ferrinhos” eram pedaços da vareta de um guarda-chuvas, com um palmo de comprimento. Servia para limpar bem o cachimbo, antes lá meter a pedra. O passo final era encher o resto do cachimbo com cinza de cigarro. “Para filtrar”, explicou-me a G. Lá foram as duas, com a promessa de um regresso breve. Lembrei à M. o nosso acordo, o trabalho de “guia” pela Bemformoso que eu lhe tinha pedido. Jurou que voltava já, depois de fumar.

Fui bebendo a cerveja que tinha encomendado e, quase uma hora depois, nenhuma delas tinha voltado. Paguei a conta e desci rua abaixo, na expectativa de as encontrar. Duzentos metros percorridos, estavam as duas, sentadas no degrau de uma casa obviamente vazia, com um cadeado enorme. Via-se pelos olhos que estavam as ambas “numa boa”, com a “alta” garantida nas próximas horas.

Uma “manobra” perigosa

Convidei-as para almoçar mas só a G é que aceitou. No caminho, encontrámos outra jovem, a S., amiga da G., com um ar de adolescente. A G. perguntou-me se ela podia almoçar connosco e eu aceitei. Encomendámos dois pratos e alguma panquecas indianas. A S. estava muito em baixo, comeu meia panqueca e saiu, com o mesmo tipo de despedida a que já me começava a habituar: “Vou ali, já venho”. A G., mais prática devorou um prato de galinha com caril e duas panquecas enormes. Pegou no resto de um prato de arroz e em parte da carne de vaca que eu não tinha comido, colocou tudo num prato e disse à empregada que era para levar. Explicou-me que tinha de sair, para ir guardar as coisas dela no quarto de uma amiga. Coisas que se resumiam, tal como a vida dela, a dois sacos de supermercado, cheios de roupa e uma mochila.

Foi aí que passei o único momento perigoso, por mera casualidade. Enquanto fui à casa de banho, a G. foi-se embora. Reparei numa mochila, exactamente na mesa onde tínhamos comido e parti do princípio que ela se teria esquecido. Peguei na mochila e saí porta fora. Não tinha andado dez metros e vem a empregada a correr atrás de mim, com dois indianos de má cara, que me tiraram a mochila, com alguma violência. Tentei explicar-lhes que tinha sido um engano meu mas limitaram-se a virar as costas e regressar ao restaurante.

Fiquei ali parado, a fumar um cigarro. Â minha frente, do outro lado da rua, nas escadinhas que desembocavam da rua do Terreirinho na rua do Benformoso, sete ou oito junkies despachavam cachimbos de crack, à luz do dia, ou enchiam-se de sangria, para “amaciar” a ressaca, por não terem conseguido os 5 euros para a "pipoca".

Um deles, um africano musculoso e dois palmos mais alto que eu, veio ter comigo, com o habitual pedido de duas moedas. Abri os cordões à bolsa, novamente, e ele perguntou-me o que é que tinha acontecido com a mochila. Expliquei-lhe a história da confusão e o comentário dele foi bastante explícito: “Meu irmão, tiveste uma sorte do c......o em não teres levado uma carga de porrada. Tens que ter cuidado, estes gajos aqui não perdoam nada e quando vêm para cima de um tipo vêm aos cinquenta, com tudo, paus e pedras. Agradece já a Deus, porque tiveste muita sorte”.

Confissão da minha “missão”

 


Em troca do conselho, dei-lhe as três moedas restantes para comprar uma “pipoca”. Aproveitei uma certa empatia que se tinha criado entre nós e resolvi abrir o jogo. Disse-lhe que era jornalista e estava ali para fazer uma reportagem e explicar à pessoas como era a realidade da vida diária no Benformoso. Perguntei-lhe se podia sentar-me nas escadinhas, ao pé dos restantes junkies. “Não há problema, estás à vontade”. Quando me aproximei, ele fez as honras casa e apresentou-me: “Este é o sr. Paulo, é jornalista e vem aqui fazer uma reportagem”.

A informação deixou o pessoal todo mais relaxado, depois de alguns olhares algo desconfiados, quando me viram a caminhar em direcção às escadinhas.

De dez em dez minutos aparecia alguém para fumar um cachimbo. O L. expansivo e falador, de tronco nú, estava a meio de uma garrafa de sangria. Parecia conhecer toda a gente que por ali passava. “Everybody and his dog”, como dizem os ingleses. E era atrevido, sem mostrar medo. Quando reparou num amigo, do outro lado da rua, obviamente a preparar-se para ir buscar uma “pipoca”, lançou-lhe um berro: “Pá, não vás a esses, vai ao outro gajo de branco” - um africano entroncado de t-shirt branca. Os potenciais vendedores de que ele tinha afastado o amigo nem sequer reagiram.

Desesperadamente à procura de uma cerveja

A G. e a M. tinham desaparecido, deviam estar ainda a curtir a pedrada no mesmo degrau onde as tinha visto. Fiquei por ali, na conversa, durante quase quatro horas. Apetecia-me alguma coisa fresca, mas não vou muito com a sangria. Perguntei ao F. se sabia onde comprar cerveja, por ali. “É já aqui”, respondeu-me. Andámos vinte metros e entrámos num café minúsculo, com um balcão de metal de metro e meio e espaço para apenas duas mesas. Por trás do balcão, uma portuguesa de cabelos brancos, nos seus cinquenta, sessenta anos. Comprei três Sagres e voltámos às escadinhas. Ofereci a terceira cerveja ao africano alto que me tinha aconselhado a ter cuidado e, depois, me deu “autorização” para sentar nas escadinhas.

Foram conversas interessantes, histórias de vidas complicadas, como T., que vivia numa tenda, num parque na zona de Campolide. O trabalho dele era angariar clientes, à porta de um bar, na zona do Bairro Alto. O ordenado, sé que se pode chamar assim, era duas dúzias de euros. Mas, como ele salientou, bebia à pála e ainda tinha algumas gorjetas de clientes satisfeitos. A três metros de nós, junto a dois caixotes de lixo, a C., uma africana gorducha e nos seus quarenta anos, atarefava-se a construir uma “casa”. Nós estávamos sentados junto à parede de um prédio, onde ainda havia alguma sombra. A C. rasgava caixas de cartão e colocava-as, com destreza, em escadinha, encostados aos caixotes de lixo. “Está a construir um 'casulo”, gozou o T. Com alguma habilidade, a C. lá conseguiu um espaço parecido a uma tenda. Deixou uma abertura, no lado virado para nós, meteu a cabeça de fora e avisou: “Agora vou dormir a sesta...” Se cá fora estava um calor insuportável, naquela barraca improvisada a temperatura devia andar pelo quarenta graus.

Entretanto, a M. reapareceu. Lá veio com a pedinchice habitual, duas moedinhas, mas dessa vez era só para uma sangria. O meu porta-moedas esvazia-se a toda a velocidade e já ia no segundo maço de tabaco – fornecendo, obviamente todo o pessoal que me rodeava.

Um alojamento tranquilo

Nessa altura, já tinha desistido da ideia de conseguir alojamento numa casa de imigrantes. As respostas negativas à minha busca por um quarto eram desmentidas pela própria realidade. Junto às escadinhas, mais abaixo, já em plena rua do Benformoso, viam-se três prédios, de cinco andares, com as cordas cheias de roupa – toalhas de banho e calças de homem. Perguntei ao T. quem morava ali. “Uma porrada de gajos, todos indianos. Aquilo está completamente cheio”, respondeu.

 


Pedi à M. para me arranjar um quarto. “Sem problemas” disse ela, com o seu tom de sempre, desenrascada e mexida. Levou-me a um alojamento local, bastante bom, limpo e quase vazio, no princípio da rua. Eram quarenta euros por dia, com casa de banho colectiva, cinquenta euros com casa de banho própria. Optei pela primeira solução. Quando saímos, a M. explicou-me que era uma casa limpa e tranquila, que era muito usada quando as raparigas sacavam alguém para ir para o quarto – prostituição, obviamente.

Regressámos às escadinhas, onde estava a G. com um ar normal – nem passada nem ressacada. Queixou-se de que estava sem roupa e que precisava de ir ao Martim Moniz, fazer compras. Aceitei acompanhá-la sabendo antecipadamente que seria eu o pagante. Entrámos noutro mundo, dominado por chineses. Controlam essencialmente todo o sistema logístico de abastecimento não à suas lojas, como também às lojas de indianos. Estabeleceram-se ali, numa espécie de filial, vindos de um grupo ancorado em Espanha.

A G. procurava uma coisa fresca, que combinasse com os ténis, cor-de-rosa. Acabei por lhe sugerir um top da mesma cor, que ela aprovou. Faltavam-lhe uma “leggings” para combinar, mas correu todas as lojas e não encontrou o que queria. Decidiu ir à loja da Humana, de roupas usadas. Deixei-a ir, com mais cinco euros para as compras. Quando subia em direcção às escadinhas, dou de caras com a M., num abraço ternurento com um rapaz dos seus vinte anos. Quando me viu, veio a correr, no seu passinho sempre acelerado: “Paulo, empresta-me cinco euros para eu comprar roupa para o meu amigo, ele saiu agora do hospital”. Só então reparei na indumentária do rapaz, uma bata de hospital e respectivas calças. Lá foi a M., também para a Humana.

Voltei às escadinhas, já um bocado cansado com o calor e as subidas e descidas da rua do Benformoso. Eram sete e meia da tarde e resolvi jantar, antes de voltar ao quarto. Escolhi um restaurante nepalês, para variar da comida indiana. Pedi uma dose de camarão, com um molho picante e um arroz. Para minha surpresa, ao folhear o menu, reparei que tinham cerveja. Escolhi uma que estava identificada como “Oriental Beer”. O empregado explicou-me que era cerveja nepalesa e eu decidi experimentá-la, pela primeira vez na vida. Fiquei surpreendido com o rótulo: “Gurkha”, o nome uma tribo nepalesa onde, há séculos, o exército britânico recruta soldados para uma unidade de elite.

Depois do jantar, dei um passeio pela rua, de ponta a ponta. Nos passeios, centenas de indianos e paquistaneses, em grupos de três, quatro, estavam entretidos em longas conversas, puxando do telemóvel com frequência. Já durante a tarde tinha visto essa curiosidade mas, à noite, estavam cinco vezes mais pessoas, nos passeios. Pela rua, circulavam outras dezenas de imigrantes, para cima e para baixo, a maioria com mochilas – sinal talvez de que, provavelmente vinham do trabalho para “casa”.

Negócios asiáticos

Tal como o meu amigo polícia me tinha explicado, o trabalho desses grupos teria a ver com sistemas de contratação de mão-de-obra, através de documentos falsos e outras manobras. Só assim se justificava que tanta gente estivesse por ali, nos passeios, às quatro, cinco da tarde, quando é suposto ser uma hora em que se está a trabalhar. Uma das coisas que me provocou curiosidade foi a quantidade de vendedores de rua, parados nos passeios, com duas grades de bebida, vazias e um tabuleiro por cima, cheio de uma mistura que parecia ser especiarias e umas folhas largas. 

 


 

Lá encontrei um vendedor que falava um pouco de inglês e me explicou o que aquilo era: paan sugari. Juntavam uma série de especiarias, tabaco, lima e açúcar, enroladas em folhas de betel. Colocavam tudo na boca, nas gengivas de um lado da boca. As folhas de betel tem um efeito psicotrópico, dão uma sensação de euforia e relaxamento. Os consumidores habituais são reconhecidos pela cor vermelha dos dentes. Os efeitos secundário de um consumo regular são muitos e maus, destacando-se o cancro na boca.

Acabei por arranjar coragem e, uma vez que já ia a caminho do quarto, podia arriscar com alguma segurança. Pedi um “paan sugari” e coloquei a mistela na boca. O sabor não é grande coisa, mas a primeira sensação é uma dormência em toda a boca. Fui rapidamente para o quarto, onde deitei a fora a mistela. Fiquei meio grogue, mas com uma sensação realmente de euforia e bem-estar.

Os ingleses e o eléctrico

Levantei-me cedo, no dia seguinte e fui à procura de um quiosque, no Rossio, para comprar os jornais. Passei pela paragem do célebre eléctrico 28, onde a bicha de turistas se prolongava já, com mais de uma centena de pessoas. Os ingleses são assim, gente feita para existir, como dizia Fernando Pessoa. A gente atira-lhes um eléctrico e saem uma centena a sorrir. No meu caminho para o Rossio, nenhum comissário de bordo velhaco me viu com qualquer sueca – apenas parei, meia-dúzia de vezes, para ajudar outros tantos turistas, perdidos nas intrincadas instruções dos mapas e folhetos.

Mesmo àquela hora matutina, já se viam turistas por todo o lado – provavelmente para aproveitar a temperatura razoável e fugir ao calor do meio-dia. Comprados os jornais, descobri que o velho Pic-Pic se tinha transformado num estabelecimento mais fino, a Fiorela. No meu primeiro ano de vida, em Portugal, regressado de Angola, quase todos os dias passava pelo Pic-Nic, onde se amontoavam largas dezenas de retornados, à procura de amigos e conhecidos. Durante esse ano, vivi à conta de um esquema pouco legal. Tinha dezassete anos quando aconteceu o 25 de Abril. Antes do final de 1974, já tinham começado os confrontos entre movimentos de libertação, transformando Luanda numa mini-Beirute.

As notícias que nos chegavam de Portugal eram más: não havia trabalho, o aeroporto estava cheio de gente a dormir no chão, sem ter para onde ir, das casas de banho saíam rios de urina. Quando a debandada geral começou, resolvi preparar-me para uma vida complicada em Lisboa.

Falei com um dos dealers, que abasteciam a zona onde eu vivia, o "Peniche", com liamba, o haxixe angolano. Na altura, os meus pais tinham uma casa de gelados, quase no centro da cidade. Eu passava algumas horas a trabalhar na caixa e fui aproveitando para desviar, discretamente, algum dinheiro – quarenta, cinquenta escudos por dia. Quando me pareceu ter o suficiente, fiz o negócio e encomendei um quilo ao dealer - três contos, como se dizia então, correspondentes a três mil escudos. Dois dias depois bateu-me à porta com um saco de plástico e a garantia de que estava ali exactamente um quilo. Tinha passado pela mercearia e pediu para pesar o saco na balança. Quando chegou a vez de eu partir, meti o saco na mochila, não fosse a única mala que levava extraviar-se. Sabia perfeitamente que não havia qualquer tipo de controle no aeroporto de Lisboa.

A “paiar” na “pedra”

Ficámos em casa de familiares e, de manhã, quando não estava ninguém em casa eu ia à mochila e fazia dois “talos” - duas doses, enroladas de forma semelhante a um cigarro. Apanhava o autocarro para o Rossio e esperava pelo meu dealer, um amigo sub-contratado. Vvia no Bairro da Coreia, perto da Samba e estava um bocado pendurado, a dormir em casa de amigos, uma dúzia deles dividada por três quartos. Dava-lhe os dois talos e ele ia para a “pedra” - a estátua de D.Pedro IV – para “paiar” (vender, na gíria angolana...) os “talos”. O negócio estava definido como um “acordo de cavalheiros”: eu recebia 120 escudos pelos dois talos e ele tirava a sua percentagem, “ferrando” os talos – retirando alguma liamba de ambos para fazer um terceiro talo, mais pequeno. Recebida a "féria do dia", costumava jantar no Pic-Nic, que tinha uns bifes fantásticos.

Tentei beber o café no restaurante renovado, mas ainda não estava aberto. Sentei-me no Nicola, mergulhado em memórias de quase cinquenta anos. Acabado o café, regressei às escadinhas, onde já estavam os junkies mais madrugadores. A G. passou por ali e pediu-me um favor. Já não tinhas onde guardar as coisas dela, queria guardá-las no meu quarto. Concordei e lá fomos. Enquanto arrumava a roupa, despejou um pequeno saco de cartão em cima da cama, à procura do batom e do rímel. À mistura, caíram mais de dúzia de preservativos, sem que ela piscasse os olhos, sequer. Mas também já não havia segredos entre nós, eu sabia perfeitamente o que ela fazia na vida. Falámos um pouco daquela cena dos imigrantes indianos e paquistaneses parados nos passeios, o dia inteiro, em grupos de três ou quatro - cena um bocado insólita. Mas nalguns casos, eram negociantes astutos. Nas lojas de telemóveis, por exemplo, podia carregar-se a bateria de um telefone por cinquenta cêntimos – um exemplo da rapidez com que os asiáticos aprendem a fazer negócios, ao contrário daquilo que o Marcelo Rebelo de Sousa disse de António Costa. A G. mostrava-se algo furiosa com toda aquela situação: “Estes tipos não fazem nada, estão ali na conversa todo o dia, mas têm dinheiro para f.....!” Dei instruções à senhora da portaria – uma cabo-verdiana a quem todos chamavam tia – para deixar a G. entrar no meu quarto, quando quisesse.

De regresso aos impérios

Quinze minutos depois, estava perto das escadinhas, onde a conversa andava por todas coisas do mundo, pela vida complicada, pela dificuldade em arranjar os cinco euros para uma “pipoca”.

F. queixava-se sobretudo do desprezo com que as pessoas olhavam para eles. “Julgam que andamos nesta vida porque queremos? Nós caímos, mas eles também podem cair, um dia...” argumentava.

Às tantas, falou-se nas festas da cidade. Já se viam algumas ruas decoradas e era uma altura de bom tempo para o pessoal porque era mais fácil arranjar umas gorjetas. “Dia 10 Junho não é só o 10 de Junho” disse subitamente O., um dos mais calados do grupo. “É dia de Portugal e de Camões”! berrou, batendo com a mão no peito. A afirmação suscitou algumas dúvidas, com vários deles a perguntarem quem era Camões. O mesmo O. explicou-lhes: “Há três poemas que são os melhores que a Humanidade produziu. A 'Eneida' que é grega e tem um herói, Eneias, a Odisseia, que também tem heróis, Ulisses e Aquiles, e os Lusíadas”. Levantou a voz e disse: “Os dois primeiros têm heróis, só os Lusíadas é que não têm um herói, os heróis dos Lusíadas somos todos nós, o povo português”.

Embalámos numa conversa interessante e inesperada. Quando mencionei Fernando Pessoa, como “adversário” de Camões, O. rejeitou liminarmente. “Fernando Pessoa não existiu nunca, foi apenas um heterónimo de Alberto Caeiro. Esse sim, é que foi o nosso segundo grande poeta”.

Já em matéria de dramaturgos, concordámos em Gil Vicente, como o nosso mais importante. A nível internacional, também houve acordo: William Shakespeare, sobretudo “Hamlet”. Durante as três horas seguintes, falámos um pouco de tudo, desde o império Mongol até às influências da música celta nas gaitas de foles do Norte de Portugal.

Estivemos entretidos até às sete da noite, com uma pequena interrupção: dois carros da polícia, vindos da rua do Terreirinho pararam junto às escadinhas, por volta das seis horas. Três polícias saíram e, de forma brusca, deram ordem para sairmos dali: “Vá, toca a andar, pessoal, desapareçam daqui.” Virámos a esquina, descemos vinte metros e ficámos de olho nos dois carros da “bófia” que continuaram pela rua do Bemformoso acima. Cinco minutos depois, estávamos novamente nas escadinhas. Por volta das sete e meia, anunciei ao pessoal que ia jantar. F. disse que não valia a pena, que íamos jantar juntos e que eu era convidado deles. Perguntei onde íamos jantar e ela respondeu: "Na praceta". Fiquei algo surpreendido, por saber que não havia restaurantes na praceta do Martim Moniz. “Confia em nós”, insistiu o F. “Vamos às oito horas.” E lá fomos andando, Benformoso abaixo, em direcção ao Martim Moniz, até chegarmos junto de uma carrinha da Igreja Sana, uma instituição de caridade que fornecia alimentos aos necessitados. Coloquei-me na bicha, com alguma vergonha interior, sabendo que ia “roubar” uma refeição a alguém que, se calhar, precisava mais dela do que eu.

Uma sobremesa especial

Sentámo-nos num degrau do jardim e saboreámos uma boa sopa portuguesa, reforçada com um pão, uma garrafa de água e uma maçã. Terminado o “repasto”, F. deu a “voz de comando”: “E agora vamos à sobremesa...” Riu-se com a estupefacção que se via na minha cara e explicou: “Vamos a uma pipoca...” Voltámos às escadinhas, com o número de imigrantes nos passeios já reduzido e grande parte das lojas com os taipais corridos. Por volta das onze da noite decidi ir para o quarto. Despedi-me do pessoal, que ainda ficou por ali. Já passava da meia-noite quando me deu a fome. A sopa da caridade estava muito boa, de facto, mas era pouco. Saí do quarto e percorri parte da rua sem vislumbrar loja aberta. De repente, vejo um dos meus amigos das escadinhas, o Z, a descer a rua. Ficou preocupado comigo e perguntou se tinha algum problema. Expliquei-lhe que tinha fome e estava tudo fechado.

 


“Não há problema, é já aqui”. Virámos à esquerda, no fim da rua do Benformoso e andámos dez metros. Um indiano, encostado aos taipais de ferro de uma loja, fumava tranquilamente um cigarro. Z. cumprimentou-o efusivamente e o indiano puxou a porta de ferro para cima. Era um esquema perfeito para fugir a qualquer infracção: a loja estava fechada, tudo bem. Abria sempre que aparecia algum cliente. Comprei alguns iogurtes e pacotes de snack. Despedi-me do Z., mas prometi-lhe que um dia havia de voltar para beber uma cerveja com o pessoal das escadinhas.

Quando entro no quarto reparei que as coisas da G. ainda lá estavam. Preparei-me para uma noite de sono curta, prevendo logo que ela só viria às tantas da manhã. Eram cinco e meia quando me bateu à porta. Estava estoirada e cheia de frio. Perguntei-lhe como é que tinha corrido a noite e ela desabafou: “Foi uma m...., não consegui sacar ninguém”. Deitou-se e dois minutos depois estava a dormir. Levantei-me às nove da manhã e tive que sacudi-la durante cinco minutos para ela abrir os olhos. Despedi-me e ela retorquiu: “Arranja-me umas moedinhas” - tarefa impossível, para mim, naquela altura, com o porta-moedas já vazio.

------------- 


 As escadinhas, vazias por causa da torreira do sol. Perto dos caixotes do lixo, o barraco improvisado da C.

Três prédios seguidos, com a cordas cheias de roupa, toalhas de banho e calças de homem. "Casa" para largas dezenas de migrantes.

 Uma banca de "paan sugari" um entorpecente feito à base de folhas de betel, especiarias e tabaco. A "pedrada" é suave e deixa-nos num estado de euforia e relaxamento
  

O ex-Presidente da Câmara, Fernando Medina, ainda hoje é "recordado" por alguns habitantes daquela rua

Na bicha para a "sopa dos pobres"



Centenas de pessoas, indianos e paquistaneses, ocupam os passeios das ruas, desde o fim da manhã até ao anoitecer 

O jantar, pouco mas saboroso - sobretudo a sopa com vegetais 

PAULO REIS
 
PS: O Correio da Manhã noticia hoje que uma das raparigas que eu conheci, ontem, nas escadinhas da rua do Benformoso, morreu. Houve uma discussão entre ela e outro junkie, por causa de uma dívida. O junkie empurrou-a, ela caiu, bateu com a cabeça no chão e morreu (Editado às 12h35, dia 1 de Junho de 2024)



 

Fraudes no reagrupamento familiar de imigrantes vão continuar

  Uma simulação de um pedido de reagrupamento familiar, numa família composta por residente em Portugal, mulher e filho menor, alvo do pedid...