sexta-feira, 31 de maio de 2024

Uma casa portuguesa, com certeza...

Tal como muitas crianças que cresceram à sombra do Estado Novo, as aulas de catequese eram uma obrigação. Tínhamos livros especiais, onde se explicava como funcionava a trilogia Deus, Pátria e Autoridade. Costumava folhear avançadamente esses livros, com a curiosidade própria da minha idade. Mas houve duas imagens que abalaram as minhas convicções e a minha crença na infalibilidade da trilogia estatal. Numa dessas imagens, via-se um navio meio-adornado, quase a afundar-se, com uma legenda: “A soberba é sempre castigada”. O nome do navio era visível, junto à proa: “Titanic”. Durante alguns anos, interroguei-me sobre qual seria a ligação entre um pecado mortal e um navio a ir ao fundo. Andei na Mocidade Portuguesa, a partir da 3ª classe. Tínhamos um uniforme parecido com o da Juventude Hitleriana: camisa verde e calções castanhos, ligados por um cinto com um “S” que logo nos ensinavam ter três significados: “Salazar, Serviço e Sacrifício”. Mas lá por casa havia livros por todo o lado, e muitas espécies de livros, porque o meu pai era um leitor compulsivo. E eu comecei a tentar econtrar, nalguns desses livros, informção que me esclarecesse as minhas dúvidas.

Um dia perguntei ao meu pai o que era o Titanic. Ele explicou-me, pormenorizadamente, que tinha sido uma das grandes tragédias dos tempos modernos, quando um navio que todos diziam ser impossível afundar, colidiu com um icebergue e naufragou, morrendo largas centenas de pessoas. Fiquei calado, a tentar vislumbrar qual o sentido de considerar uma tragédia como sendo uma manifestação de soberba.

Outra imagem que me marcou, nesses livros de catequese, retratava uma típica família portuguesa: a mãe à porta de casa, com um filho nos braços e outro agarrado às saias, com a figura do pai visível a poucos metros, a afastar-se. Ia de enxada ao ombro e descalço – tal como a mãe. Eu teria uns sete ou oito anos e aquela imagem espantou-me. Nascido em Angola, não me lembrava de ter visto, nunca, um branco descalço. Só os negros é que andavam descalços. Foram dois episódios que me marcaram, pelo seu absurdo e pela minha dificuldade em entender aqueles paradoxos – o navio Titanic, a ser considerado um exemplo de luxúria e soberba e a família branca, típica de uma aldeia portuguesa, descalça.

Foram precisos alguns anos para eu conseguir perceber o sentido daquelas duas imagens. Voltei a interrogar o meu pai, já com a certeza de que, nos meus dez, onze anos, ele não me recusaria uma explicação. E foi assim que fiquei a conhecer a tragédia do Titanic, uma tragédia longe dos ensinamentos religiosos que nos impingiam. O mistério da família de pés descalços foi-me esclarecido de forma mais dolorosa. Em Portugal, como me disse o meu pai, havia muitas famílias pobres, que não tinham dinheiro para comprar sapatos. 

E explicou-me que, a primeira vez que ele calçou um par de sapatos, foi para ir fazer o exame da 4ª classe. A professora era uma velha solteirona, dura e seca, que autorizava os alunos a virem descalços para a escola, mesmo quando se realizavam os exames da 1ª à 3ª classes, com uma excepção: no dia do exame da 4ª classe tinham que vir calçados ou não entravam. E foi assim que o meu pai calçou os primeiros sapatos da sua vida – uns sapatos emprestados por um primo de família mais abastada, três dedos maiores que o pé dele, de maneira que teve que atar um fio em cada um, para que os sapatos não lhe caíssem. 

Como era uma data para celebrar, o exame da 4ª classe, onde a maioria dos miúdos da aldeia não chegavam, a minha avó preparou-lhe um almoço especial: para além da habitual batata cozida, enrolada num papel, que era o seu almoço diário, conseguiu arranjar meia sardinha assada, para melhorar a refeição. Saídos os resultados, foi dia de festa, lá em casa. O meu pai tinha sido o melhor classificado da turma e essa classificação traçou-lhe a vida, pelos nos 20 anos seguintes. Por decisão do padre daquela paróquia e da professora, o destino dele foi decidido: como era o mais inteligente, ia para o seminário, para ser padre. E foi. Mas não chegou a ser padre...

Opinião / Paulo Reis  

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