PAULO REIS
Conheci o T. numa noite de copos, no Bairro Alto. Era polícia à paisana, dedicado essencialmente ao combate ao tráfico de droga. Na mesa estava também um colega jornalista, que trabalhava na área do crime. Fiz-lhe algumas perguntas, curioso sobre o tema e trocámos telefones, para outra noite de copos.
Liguei-lhe uma semana antes de ir fazer um passeio pela rua do Bemformoso, para “cheirar” o que lá passava – e que seria interessante, pelas notícias e reportagens que ia lendo e vendo em diversos órgãos de Comunicação Social.
Pedi-lhe um retrato de como é que funcionavam as coisas, por ali. E era simples: indianos e paquistaneses dedicados ao tráfico de mão-de-obra e guineenses a controlar a venda de droga – essencialmente “crack”, o parente pobre da heroína. Barato – uma “pedra”, mais conhecida por “pipoca”, para consumo de uma pessoa, custa apenas 5 euros. Tem um efeito rápido, é extremamente viciante, mas o tempo de "pedrada" é curto.
Numa terça-feira pus-me a caminho. Cheguei pouco antes da hora do almoço e, para fazer “contacto”, logo no princípio da rua do Bemformoso, perguntei a um indiano com aspecto de “junkie”, se conhecia algum bom restaurante.
Embora fosse na direcção oposta à minha, fez questão de inverter caminho e levar-me ao restaurante. No trajecto, perguntou-me o nome e respondeu com o seu nome, também: Dierk, pareceu-me ouvir. Duzentos metros acima do início da rua indicou-me o “Taste of Lahore”. Foi comigo até à porta, obviamente para que o patrão percebesse que ele é que tinha angariado o cliente. Antes de nos despedirmos, pediu-me uma ajuda, perguntando se eu tinha algumas moedas. Vivia em Portugal há dois anos, mas estava sem trabalho, nem tinha dinheiro para pagar uma cama. Dei-lhe cinco euros, o que ele agradeceu efusivamente.
O restaurante de Lahore que não era de Lahore
No restaurante, veio o patrão falar comigo. Quando olhei para o menu, disse-lhe que aquilo eram pratos indianos. Ora, Lahore é uma cidade paquistanesa. Riu-se e não me soube dar qualquer explicação. Percebi que havia uma coisa fora da ementa: cerveja, que era algo que cairia bem no calor insuportável que se fazia sentir. “No beer, sir” - uma frase que ouvi repetida 30 ou 40 vezes, em tantos mini-mercados e restaurantes onde fui, durante dois dias. Depois reparei que, em todos os sítios onde se comia ou se faziam compras, como os mini-mercados, havia sempre a palavra “Halal” - “permitido, autorizado”, coisa que não acontecia com o álcool, “Haram”, proibido, fora da lei islâmica.
Tentei um primeiro contacto e perguntei ao patrão se conhecia algum sítio onde alugassem quartos, acrescentando que era turista e queria conhecer aquela zona. Disse enfaticamente que não conhecia nenhum sítio nem tinha amigos que conhecem.
Sem me dar desanimado, com esta primeira derrota, subi a rua do Bemformoso. O meu objectivo original era arranjar uma cama ou um quarto, numa daquelas casas onde habitavam nove ou dez imigrantes. Duas horas e dezenas de contactos depois, não tinha conseguido nada. Até a barbearias fui, sempre com mesma pergunta – um quarto para alugar – e com uma de duas respostas: alguns não conheciam nada, completamente, outros admitiam que conheciam mas estava cheio. Tudo obviamente falso, mas justificado por uma intrínseca desconfiança, um branco a perguntar por quartos naquela zona que, de turística não tem muito: um ou outro casal estrangeiro, de calções e t-shirt, de meia idade, com um ar perdido e mapa na mão, procurando sítios diferentes.
Uma guia contratada
Ia a meio da rua quando fui abordado pela M. Loira magrinha mas com uma cara bonita, o cabelo preso, num nó, no alto da cabeça e uma mini-saia que mais precia um cinto largo e que pouco deixava à imaginação. Soube depois que tinha apenas 24 anos, mas parecia ter mais.
Pediu-me umas moedas, não tinha dinheiro para comer. Dei-lhe dois euros e ela aproveitou para subir a parada: “Arranja-me mais três euros...” Percebi, pela conversa que tinha tido com o meu amigo polícia, que ela estava à procura do dinheiro suficiente para uma dose, cinco euros.
Propus-lhe um negócio: eu dava-lhe os cinco euros, mas ela servia-me de guia, para me mostrar a rua do Benformoso. Aceitou logo e subimos até uma esplanada no largo do Intendente. Perguntou-me se podia convidar uma amiga, para beber uma cerveja. Saiu e voltou, cinco minutos depois com a G. uma morena sorridente e bem-disposta, trinta e quatro anos, três filhos. Trocaram a parafernália necessária, a M. tinha cachimbo, mas não tinha “ferrinhos”. Perante a minha curiosidade, explicaram-me que os “ferrinhos” eram pedaços da vareta de um guarda-chuvas, com um palmo de comprimento. Servia para limpar bem o cachimbo, antes lá meter a pedra. O passo final era encher o resto do cachimbo com cinza de cigarro. “Para filtrar”, explicou-me a G. Lá foram as duas, com a promessa de um regresso breve. Lembrei à M. o nosso acordo, o trabalho de “guia” pela Bemformoso que eu lhe tinha pedido. Jurou que voltava já, depois de fumar.
Fui bebendo a cerveja que tinha encomendado e, quase uma hora depois, nenhuma delas tinha voltado. Paguei a conta e desci rua abaixo, na expectativa de as encontrar. Duzentos metros percorridos, estavam as duas, sentadas no degrau de uma casa obviamente vazia, com um cadeado enorme. Via-se pelos olhos que estavam as ambas “numa boa”, com a “alta” garantida nas próximas horas.
Uma “manobra” perigosa
Convidei-as para almoçar mas só a G é que aceitou. No caminho, encontrámos outra jovem, a S., amiga da G., com um ar de adolescente. A G. perguntou-me se ela podia almoçar connosco e eu aceitei. Encomendámos dois pratos e alguma panquecas indianas. A S. estava muito em baixo, comeu meia panqueca e saiu, com o mesmo tipo de despedida a que já me começava a habituar: “Vou ali, já venho”. A G., mais prática devorou um prato de galinha com caril e duas panquecas enormes. Pegou no resto de um prato de arroz e em parte da carne de vaca que eu não tinha comido, colocou tudo num prato e disse à empregada que era para levar. Explicou-me que tinha de sair, para ir guardar as coisas dela no quarto de uma amiga. Coisas que se resumiam, tal como a vida dela, a dois sacos de supermercado, cheios de roupa e uma mochila.
Foi aí que passei o único momento perigoso, por mera casualidade. Enquanto fui à casa de banho, a G. foi-se embora. Reparei numa mochila, exactamente na mesa onde tínhamos comido e parti do princípio que ela se teria esquecido. Peguei na mochila e saí porta fora. Não tinha andado dez metros e vem a empregada a correr atrás de mim, com dois indianos de má cara, que me tiraram a mochila, com alguma violência. Tentei explicar-lhes que tinha sido um engano meu mas limitaram-se a virar as costas e regressar ao restaurante.
Fiquei ali parado, a fumar um cigarro. Â minha frente, do outro lado da rua, nas escadinhas que desembocavam da rua do Terreirinho na rua do Benformoso, sete ou oito junkies despachavam cachimbos de crack, à luz do dia, ou enchiam-se de sangria, para “amaciar” a ressaca, por não terem conseguido os 5 euros para a "pipoca".
Um deles, um africano musculoso e dois palmos mais alto que eu, veio ter comigo, com o habitual pedido de duas moedas. Abri os cordões à bolsa, novamente, e ele perguntou-me o que é que tinha acontecido com a mochila. Expliquei-lhe a história da confusão e o comentário dele foi bastante explícito: “Meu irmão, tiveste uma sorte do c......o em não teres levado uma carga de porrada. Tens que ter cuidado, estes gajos aqui não perdoam nada e quando vêm para cima de um tipo vêm aos cinquenta, com tudo, paus e pedras. Agradece já a Deus, porque tiveste muita sorte”.
Confissão da minha “missão”
Em troca do conselho, dei-lhe as três moedas restantes para comprar uma “pipoca”. Aproveitei uma certa empatia que se tinha criado entre nós e resolvi abrir o jogo. Disse-lhe que era jornalista e estava ali para fazer uma reportagem e explicar à pessoas como era a realidade da vida diária no Benformoso. Perguntei-lhe se podia sentar-me nas escadinhas, ao pé dos restantes junkies. “Não há problema, estás à vontade”. Quando me aproximei, ele fez as honras casa e apresentou-me: “Este é o sr. Paulo, é jornalista e vem aqui fazer uma reportagem”.
A informação deixou o pessoal todo mais relaxado, depois de alguns olhares algo desconfiados, quando me viram a caminhar em direcção às escadinhas.
De dez em dez minutos aparecia alguém para fumar um cachimbo. O L. expansivo e falador, de tronco nú, estava a meio de uma garrafa de sangria. Parecia conhecer toda a gente que por ali passava. “Everybody and his dog”, como dizem os ingleses. E era atrevido, sem mostrar medo. Quando reparou num amigo, do outro lado da rua, obviamente a preparar-se para ir buscar uma “pipoca”, lançou-lhe um berro: “Pá, não vás a esses, vai ao outro gajo de branco” - um africano entroncado de t-shirt branca. Os potenciais vendedores de que ele tinha afastado o amigo nem sequer reagiram.
Desesperadamente à procura de uma cerveja
A G. e a M. tinham desaparecido, deviam estar ainda a curtir a pedrada no mesmo degrau onde as tinha visto. Fiquei por ali, na conversa, durante quase quatro horas. Apetecia-me alguma coisa fresca, mas não vou muito com a sangria. Perguntei ao F. se sabia onde comprar cerveja, por ali. “É já aqui”, respondeu-me. Andámos vinte metros e entrámos num café minúsculo, com um balcão de metal de metro e meio e espaço para apenas duas mesas. Por trás do balcão, uma portuguesa de cabelos brancos, nos seus cinquenta, sessenta anos. Comprei três Sagres e voltámos às escadinhas. Ofereci a terceira cerveja ao africano alto que me tinha aconselhado a ter cuidado e, depois, me deu “autorização” para sentar nas escadinhas.
Foram conversas interessantes, histórias de vidas complicadas, como T., que vivia numa tenda, num parque na zona de Campolide. O trabalho dele era angariar clientes, à porta de um bar, na zona do Bairro Alto. O ordenado, sé que se pode chamar assim, era duas dúzias de euros. Mas, como ele salientou, bebia à pála e ainda tinha algumas gorjetas de clientes satisfeitos. A três metros de nós, junto a dois caixotes de lixo, a C., uma africana gorducha e nos seus quarenta anos, atarefava-se a construir uma “casa”. Nós estávamos sentados junto à parede de um prédio, onde ainda havia alguma sombra. A C. rasgava caixas de cartão e colocava-as, com destreza, em escadinha, encostados aos caixotes de lixo. “Está a construir um 'casulo”, gozou o T. Com alguma habilidade, a C. lá conseguiu um espaço parecido a uma tenda. Deixou uma abertura, no lado virado para nós, meteu a cabeça de fora e avisou: “Agora vou dormir a sesta...” Se cá fora estava um calor insuportável, naquela barraca improvisada a temperatura devia andar pelo quarenta graus.
Entretanto, a M. reapareceu. Lá veio com a pedinchice habitual, duas moedinhas, mas dessa vez era só para uma sangria. O meu porta-moedas esvazia-se a toda a velocidade e já ia no segundo maço de tabaco – fornecendo, obviamente todo o pessoal que me rodeava.
Um alojamento tranquilo
Nessa altura, já tinha desistido da ideia de conseguir alojamento numa casa de imigrantes. As respostas negativas à minha busca por um quarto eram desmentidas pela própria realidade. Junto às escadinhas, mais abaixo, já em plena rua do Benformoso, viam-se três prédios, de cinco andares, com as cordas cheias de roupa – toalhas de banho e calças de homem. Perguntei ao T. quem morava ali. “Uma porrada de gajos, todos indianos. Aquilo está completamente cheio”, respondeu.
Pedi à M. para me arranjar um quarto. “Sem problemas” disse ela, com o seu tom de sempre, desenrascada e mexida. Levou-me a um alojamento local, bastante bom, limpo e quase vazio, no princípio da rua. Eram quarenta euros por dia, com casa de banho colectiva, cinquenta euros com casa de banho própria. Optei pela primeira solução. Quando saímos, a M. explicou-me que era uma casa limpa e tranquila, que era muito usada quando as raparigas sacavam alguém para ir para o quarto – prostituição, obviamente.
Regressámos às escadinhas, onde estava a G. com um ar normal – nem passada nem ressacada. Queixou-se de que estava sem roupa e que precisava de ir ao Martim Moniz, fazer compras. Aceitei acompanhá-la sabendo antecipadamente que seria eu o pagante. Entrámos noutro mundo, dominado por chineses. Controlam essencialmente todo o sistema logístico de abastecimento não à suas lojas, como também às lojas de indianos. Estabeleceram-se ali, numa espécie de filial, vindos de um grupo ancorado em Espanha.
A G. procurava uma coisa fresca, que combinasse com os ténis, cor-de-rosa. Acabei por lhe sugerir um top da mesma cor, que ela aprovou. Faltavam-lhe uma “leggings” para combinar, mas correu todas as lojas e não encontrou o que queria. Decidiu ir à loja da Humana, de roupas usadas. Deixei-a ir, com mais cinco euros para as compras. Quando subia em direcção às escadinhas, dou de caras com a M., num abraço ternurento com um rapaz dos seus vinte anos. Quando me viu, veio a correr, no seu passinho sempre acelerado: “Paulo, empresta-me cinco euros para eu comprar roupa para o meu amigo, ele saiu agora do hospital”. Só então reparei na indumentária do rapaz, uma bata de hospital e respectivas calças. Lá foi a M., também para a Humana.
Voltei às escadinhas, já um bocado cansado com o calor e as subidas e descidas da rua do Benformoso. Eram sete e meia da tarde e resolvi jantar, antes de voltar ao quarto. Escolhi um restaurante nepalês, para variar da comida indiana. Pedi uma dose de camarão, com um molho picante e um arroz. Para minha surpresa, ao folhear o menu, reparei que tinham cerveja. Escolhi uma que estava identificada como “Oriental Beer”. O empregado explicou-me que era cerveja nepalesa e eu decidi experimentá-la, pela primeira vez na vida. Fiquei surpreendido com o rótulo: “Gurkha”, o nome uma tribo nepalesa onde, há séculos, o exército britânico recruta soldados para uma unidade de elite.
Depois do jantar, dei um passeio pela rua, de ponta a ponta. Nos passeios, centenas de indianos e paquistaneses, em grupos de três, quatro, estavam entretidos em longas conversas, puxando do telemóvel com frequência. Já durante a tarde tinha visto essa curiosidade mas, à noite, estavam cinco vezes mais pessoas, nos passeios. Pela rua, circulavam outras dezenas de imigrantes, para cima e para baixo, a maioria com mochilas – sinal talvez de que, provavelmente vinham do trabalho para “casa”.
Negócios asiáticos
Tal como o meu amigo polícia me tinha explicado, o trabalho desses grupos teria a ver com sistemas de contratação de mão-de-obra, através de documentos falsos e outras manobras. Só assim se justificava que tanta gente estivesse por ali, nos passeios, às quatro, cinco da tarde, quando é suposto ser uma hora em que se está a trabalhar. Uma das coisas que me provocou curiosidade foi a quantidade de vendedores de rua, parados nos passeios, com duas grades de bebida, vazias e um tabuleiro por cima, cheio de uma mistura que parecia ser especiarias e umas folhas largas.
Lá encontrei um vendedor que falava um pouco de inglês e me explicou o que aquilo era: paan sugari. Juntavam uma série de especiarias, tabaco, lima e açúcar, enroladas em folhas de betel. Colocavam tudo na boca, nas gengivas de um lado da boca. As folhas de betel tem um efeito psicotrópico, dão uma sensação de euforia e relaxamento. Os consumidores habituais são reconhecidos pela cor vermelha dos dentes. Os efeitos secundário de um consumo regular são muitos e maus, destacando-se o cancro na boca.
Acabei por arranjar coragem e, uma vez que já ia a caminho do quarto, podia arriscar com alguma segurança. Pedi um “paan sugari” e coloquei a mistela na boca. O sabor não é grande coisa, mas a primeira sensação é uma dormência em toda a boca. Fui rapidamente para o quarto, onde deitei a fora a mistela. Fiquei meio grogue, mas com uma sensação realmente de euforia e bem-estar.
Os ingleses e o eléctrico
Levantei-me cedo, no dia seguinte e fui à procura de um quiosque, no Rossio, para comprar os jornais. Passei pela paragem do célebre eléctrico 28, onde a bicha de turistas se prolongava já, com mais de uma centena de pessoas. Os ingleses são assim, gente feita para existir, como dizia Fernando Pessoa. A gente atira-lhes um eléctrico e saem uma centena a sorrir. No meu caminho para o Rossio, nenhum comissário de bordo velhaco me viu com qualquer sueca – apenas parei, meia-dúzia de vezes, para ajudar outros tantos turistas, perdidos nas intrincadas instruções dos mapas e folhetos.
Mesmo àquela hora matutina, já se viam turistas por todo o lado – provavelmente para aproveitar a temperatura razoável e fugir ao calor do meio-dia. Comprados os jornais, descobri que o velho Pic-Pic se tinha transformado num estabelecimento mais fino, a Fiorela. No meu primeiro ano de vida, em Portugal, regressado de Angola, quase todos os dias passava pelo Pic-Nic, onde se amontoavam largas dezenas de retornados, à procura de amigos e conhecidos. Durante esse ano, vivi à conta de um esquema pouco legal. Tinha dezassete anos quando aconteceu o 25 de Abril. Antes do final de 1974, já tinham começado os confrontos entre movimentos de libertação, transformando Luanda numa mini-Beirute.
As notícias que nos chegavam de Portugal eram más: não havia trabalho, o aeroporto estava cheio de gente a dormir no chão, sem ter para onde ir, das casas de banho saíam rios de urina. Quando a debandada geral começou, resolvi preparar-me para uma vida complicada em Lisboa.
Falei com um dos dealers, que abasteciam a zona onde eu vivia, o "Peniche", com liamba, o haxixe angolano. Na altura, os meus pais tinham uma casa de gelados, quase no centro da cidade. Eu passava algumas horas a trabalhar na caixa e fui aproveitando para desviar, discretamente, algum dinheiro – quarenta, cinquenta escudos por dia. Quando me pareceu ter o suficiente, fiz o negócio e encomendei um quilo ao dealer - três contos, como se dizia então, correspondentes a três mil escudos. Dois dias depois bateu-me à porta com um saco de plástico e a garantia de que estava ali exactamente um quilo. Tinha passado pela mercearia e pediu para pesar o saco na balança. Quando chegou a vez de eu partir, meti o saco na mochila, não fosse a única mala que levava extraviar-se. Sabia perfeitamente que não havia qualquer tipo de controle no aeroporto de Lisboa.
A “paiar” na “pedra”
Ficámos em casa de familiares e, de manhã, quando não estava ninguém em casa eu ia à mochila e fazia dois “talos” - duas doses, enroladas de forma semelhante a um cigarro. Apanhava o autocarro para o Rossio e esperava pelo meu dealer, um amigo sub-contratado. Vvia no Bairro da Coreia, perto da Samba e estava um bocado pendurado, a dormir em casa de amigos, uma dúzia deles dividada por três quartos. Dava-lhe os dois talos e ele ia para a “pedra” - a estátua de D.Pedro IV – para “paiar” (vender, na gíria angolana...) os “talos”. O negócio estava definido como um “acordo de cavalheiros”: eu recebia 120 escudos pelos dois talos e ele tirava a sua percentagem, “ferrando” os talos – retirando alguma liamba de ambos para fazer um terceiro talo, mais pequeno. Recebida a "féria do dia", costumava jantar no Pic-Nic, que tinha uns bifes fantásticos.
Tentei beber o café no restaurante renovado, mas ainda não estava aberto. Sentei-me no Nicola, mergulhado em memórias de quase cinquenta anos. Acabado o café, regressei às escadinhas, onde já estavam os junkies mais madrugadores. A G. passou por ali e pediu-me um favor. Já não tinhas onde guardar as coisas dela, queria guardá-las no meu quarto. Concordei e lá fomos. Enquanto arrumava a roupa, despejou um pequeno saco de cartão em cima da cama, à procura do batom e do rímel. À mistura, caíram mais de dúzia de preservativos, sem que ela piscasse os olhos, sequer. Mas também já não havia segredos entre nós, eu sabia perfeitamente o que ela fazia na vida. Falámos um pouco daquela cena dos imigrantes indianos e paquistaneses parados nos passeios, o dia inteiro, em grupos de três ou quatro - cena um bocado insólita. Mas nalguns casos, eram negociantes astutos. Nas lojas de telemóveis, por exemplo, podia carregar-se a bateria de um telefone por cinquenta cêntimos – um exemplo da rapidez com que os asiáticos aprendem a fazer negócios, ao contrário daquilo que o Marcelo Rebelo de Sousa disse de António Costa. A G. mostrava-se algo furiosa com toda aquela situação: “Estes tipos não fazem nada, estão ali na conversa todo o dia, mas têm dinheiro para f.....!” Dei instruções à senhora da portaria – uma cabo-verdiana a quem todos chamavam tia – para deixar a G. entrar no meu quarto, quando quisesse.
De regresso aos impérios
Quinze minutos depois, estava perto das escadinhas, onde a conversa andava por todas coisas do mundo, pela vida complicada, pela dificuldade em arranjar os cinco euros para uma “pipoca”.
F. queixava-se sobretudo do desprezo com que as pessoas olhavam para eles. “Julgam que andamos nesta vida porque queremos? Nós caímos, mas eles também podem cair, um dia...” argumentava.
Às tantas, falou-se nas festas da cidade. Já se viam algumas ruas decoradas e era uma altura de bom tempo para o pessoal porque era mais fácil arranjar umas gorjetas. “Dia 10 Junho não é só o 10 de Junho” disse subitamente O., um dos mais calados do grupo. “É dia de Portugal e de Camões”! berrou, batendo com a mão no peito. A afirmação suscitou algumas dúvidas, com vários deles a perguntarem quem era Camões. O mesmo O. explicou-lhes: “Há três poemas que são os melhores que a Humanidade produziu. A 'Eneida' que é grega e tem um herói, Eneias, a Odisseia, que também tem heróis, Ulisses e Aquiles, e os Lusíadas”. Levantou a voz e disse: “Os dois primeiros têm heróis, só os Lusíadas é que não têm um herói, os heróis dos Lusíadas somos todos nós, o povo português”.
Embalámos numa conversa interessante e inesperada. Quando mencionei Fernando Pessoa, como “adversário” de Camões, O. rejeitou liminarmente. “Fernando Pessoa não existiu nunca, foi apenas um heterónimo de Alberto Caeiro. Esse sim, é que foi o nosso segundo grande poeta”.
Já em matéria de dramaturgos, concordámos em Gil Vicente, como o nosso mais importante. A nível internacional, também houve acordo: William Shakespeare, sobretudo “Hamlet”. Durante as três horas seguintes, falámos um pouco de tudo, desde o império Mongol até às influências da música celta nas gaitas de foles do Norte de Portugal.
Estivemos entretidos até às sete da noite, com uma pequena interrupção: dois carros da polícia, vindos da rua do Terreirinho pararam junto às escadinhas, por volta das seis horas. Três polícias saíram e, de forma brusca, deram ordem para sairmos dali: “Vá, toca a andar, pessoal, desapareçam daqui.” Virámos a esquina, descemos vinte metros e ficámos de olho nos dois carros da “bófia” que continuaram pela rua do Bemformoso acima. Cinco minutos depois, estávamos novamente nas escadinhas. Por volta das sete e meia, anunciei ao pessoal que ia jantar. F. disse que não valia a pena, que íamos jantar juntos e que eu era convidado deles. Perguntei onde íamos jantar e ela respondeu: "Na praceta". Fiquei algo surpreendido, por saber que não havia restaurantes na praceta do Martim Moniz. “Confia em nós”, insistiu o F. “Vamos às oito horas.” E lá fomos andando, Benformoso abaixo, em direcção ao Martim Moniz, até chegarmos junto de uma carrinha da Igreja Sana, uma instituição de caridade que fornecia alimentos aos necessitados. Coloquei-me na bicha, com alguma vergonha interior, sabendo que ia “roubar” uma refeição a alguém que, se calhar, precisava mais dela do que eu.
Uma sobremesa especial
Sentámo-nos num degrau do jardim e saboreámos uma boa sopa portuguesa, reforçada com um pão, uma garrafa de água e uma maçã. Terminado o “repasto”, F. deu a “voz de comando”: “E agora vamos à sobremesa...” Riu-se com a estupefacção que se via na minha cara e explicou: “Vamos a uma pipoca...” Voltámos às escadinhas, com o número de imigrantes nos passeios já reduzido e grande parte das lojas com os taipais corridos. Por volta das onze da noite decidi ir para o quarto. Despedi-me do pessoal, que ainda ficou por ali. Já passava da meia-noite quando me deu a fome. A sopa da caridade estava muito boa, de facto, mas era pouco. Saí do quarto e percorri parte da rua sem vislumbrar loja aberta. De repente, vejo um dos meus amigos das escadinhas, o Z, a descer a rua. Ficou preocupado comigo e perguntou se tinha algum problema. Expliquei-lhe que tinha fome e estava tudo fechado.
“Não há problema, é já aqui”. Virámos à esquerda, no fim da rua do Benformoso e andámos dez metros. Um indiano, encostado aos taipais de ferro de uma loja, fumava tranquilamente um cigarro. Z. cumprimentou-o efusivamente e o indiano puxou a porta de ferro para cima. Era um esquema perfeito para fugir a qualquer infracção: a loja estava fechada, tudo bem. Abria sempre que aparecia algum cliente. Comprei alguns iogurtes e pacotes de snack. Despedi-me do Z., mas prometi-lhe que um dia havia de voltar para beber uma cerveja com o pessoal das escadinhas.
Quando entro no quarto reparei que as coisas da G. ainda lá estavam. Preparei-me para uma noite de sono curta, prevendo logo que ela só viria às tantas da manhã. Eram cinco e meia quando me bateu à porta. Estava estoirada e cheia de frio. Perguntei-lhe como é que tinha corrido a noite e ela desabafou: “Foi uma m...., não consegui sacar ninguém”. Deitou-se e dois minutos depois estava a dormir. Levantei-me às nove da manhã e tive que sacudi-la durante cinco minutos para ela abrir os olhos. Despedi-me e ela retorquiu: “Arranja-me umas moedinhas” - tarefa impossível, para mim, naquela altura, com o porta-moedas já vazio.
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As escadinhas, vazias por causa da torreira do sol. Perto dos caixotes do lixo, o barraco improvisado da C.Três prédios seguidos, com a cordas cheias de roupa, toalhas de banho e calças de homem. "Casa" para largas dezenas de migrantes.
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Uma banca de "paan sugari" um entorpecente feito à base de folhas de betel, especiarias e tabaco. A "pedrada" é suave e deixa-nos num estado de euforia e relaxamento |
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O ex-Presidente da Câmara, Fernando Medina, ainda hoje é "recordado" por alguns habitantes daquela rua |
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Na bicha para a "sopa dos pobres" |
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Centenas de pessoas, indianos e paquistaneses, ocupam os passeios das ruas, desde o fim da manhã até ao anoitecer | |
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O jantar, pouco mas saboroso - sobretudo a sopa com vegetais | |
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