
TRAVESSA DAS VERDADES (OPINIÃO) - João
Tavira
Com
a devida vénia, aqui se republica uma crónica de um bloguer
brasileiro, Bráulio Tavares, autor de uma coluna no "Jornal da
Paraíba" entre 23 de março de 2003 até 10 de abril de 2016,
data a partir da qual, com o fecho do jornal, os textos passaram para
um blogue na Internet.
Já
tinha passado os olhos por este texto, sem lhe dar grande importância
ou relevo. Mas quando ouvi a diatribe parlamentar de André Ventura
sobre os turcos preguiçosos, não pude deixar de fazer um
paralelismo com um conhecido episódio da vida do escritor e
colunista Eça de Queiroz. Pressionado pela horas a que devia
entregar a sua crónica regular e sem temas que lhe viessem à
cabeça, Eça de de Queiroz decide desancar, forte e feio, no Bei deTunes, que, coitado, não passava de um governante menor, numa província sob ocupação turca – pormenor que permite algumas dúvidas sobre
a natural e aparente preguiça dos turcos, uma vez que até tinham conquistado um império e anexado a província de Túnis.
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Bráulio
Tavares
quinta-feira,
27 de março de 2008
In
“Mundo Fantasmo”
O
Bei de Túnis é um personagem familiar aos escritores que já
sobreviveram graças ao jornalismo diário. “Bei” era o título
dos governadores de província em Túnis, na época da dominação
turca. Eça
de Queiroz tinha uma coluna de jornal para a qual era preciso achar
assunto diariamente. Um tarde, com o juízo zerado e o relógio
galopando, lembrou-se por algum motivo do Bei de Túnis e escreveu um
artigo demolidor, acabando com o sujeito. Quando no outro dia lhe
perguntaram a razão do ataque, confessou que era falta de assunto, e
concluiu: “Não importa: em Túnis há sempre um Bei.
Desanquei-o.”
“Bei de Túnis” virou sinônimo erudito
para “bode expiatório” ou para “Pilatos no Credo”: é aquele
coitado que não tem nada com a história, que não se chama Joaquim
nem mora em Niterói, mas que acaba levando as bordoadas de alguém
que precisava esbordoar as primeiras costas que aparecessem. Sei
dessa história desde pequeno, contada por meu pai. Por algum motivo
sempre achei cômico visualizar a imagem de um político importante
vivendo sua vida e tomando suas decisões, sem saber que do outro
lado do mundo um jornalista anônimo está metendo o chanfalho nele,
apenas para se desincumbir de uma tarefa.
Toda as vezes em que
me sentei à máquina de escrever para desancar os estúdios de
Hollywood ou as multinacionais do disco, sempre pensei que, por mais
sinceras que fossem as minhas diatribes, no fundo aquilo era apenas
um Bei de Túnis que me ajudava a ir para casa mais cedo. O
episódio do Bei de Túnis, contudo, me parece ter uma relação
oculta com outra história de Eça, uma das mais famosas: “O
Mandarim”. Esta
noveleta meio fantástica, publicada em 1880, foi uma espécie de
ruptura com o realismo de “O crime do Padre Amaro” (1876) e “O
primo Basílio” (1878).
Sua premissa era uma questão teórica
conhecida como “o paradoxo do mandarim”, proposta em 1802 por
François de Chateaubriand em “O Gênio do Cristianismo:”
“Se
você pudesse, com um simples desejo, matar um homem na China e
herdar sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que
nunca ninguém descobriria, você formularia esse desejo?”
Em
“O Mandarim”, o personagem Teodoro lê num livro a proposta
diabólica:
“No fundo da China existe um mandarim, mais rico que
todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada
conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste.
Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques
essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas
um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver; e
tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um
avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a
campainha?"
Parece
haver apenas uma diferença de grau entre a capacidade de castigar
verbalmente à revelia um turco remoto, e a capacidade de assassinar
à distância um chinês para herdar-lhe os ouros. Nenhum escritor é
totalmente inocente dos crimes que imagina.
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PS
– Na ressaca do recente episódio parlamentar, lamentável e de mau
gosto, fica-me uma interrogação: porque Diabo é que o André
Ventura optou por desancar nos turcos? E porque não nos arménios? Ou até nos nossos vizinhos espanhóis, para quem a sesta pós-almoço é um dos valores sociais mais enraizados? Ventura também não estava pressionado por
nenhum deadline para entregar uma crónica a ser publicada num jornal, não tinha nenhuma entrevista marcada e - que eu saiba - não tinha sofrido nenhuma intoxicação alimentar, depois de comer um kebab.
Só
me ocorre uma razão para justificar a intervenção do tribuno que
lidera o “Chega”: O André Ventura tinha que intervir, tinha que
dizer qualquer coisa polémica, como diz todos os dias e, vai daí,
imitou o Eça de Queiroz: desancou na primeira coisa que lhe veio à
cabeça. No caso, os pobres dos turcos...