O site Buala é um site muitointeressante, com uma qualidade fora de série, dedicado às questões
e problemas das comunidades africanas residentes em Portugal e não
só. Merece uma leitura atenta aos inúmeros artigos que analisam uma
realidade social, cultural e política bem presente no nosso país.
Mas também não foge às polémica e controvérsias, próprias de um
inter-relacionamento entre comunidades distintas, do ponto de vista
social, cultural e políticas. Reproduzimos aqui um dos textos publicados no "Buala", onde se levantam questões polémicas mas sigificantes, nos dias de hoje.
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Reparações? As omissões, os
portões trancados da revolução e a petrificação dos cravos
Apolo de Carvalho
Se é facto que “Abril abriu
novas portas”, por onde muitos adentraram, é válido então
perguntar: quem são esses que ainda se encontram à entrada,
barrados e sistematicamente controlados? A quem se destinam de facto,
as tão celebradas “promessas de Abril”?
Se é mesmo verdade que “Abril
abriu novas portas”, interessa saber se terá igualmente fechado as
suas portas velhas. As velhas e mórbidas, as portas do império, do
colonialismo, do lusotropicalismo, do fascismo e do racismo. Quandoouço “25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!” olho consternadopara as bancadas da Assembleia da República. 50 anos de Abril, 50deputados racistas e fascistas sentados à mesa, na casa do povo quemais ordena.
É verdade que Abril chegou, mas
carregando todo um conjunto de heranças de um Portugal que quis (e
quer) ser grande à custa de vidas outras. Um Portugal que ainda
sonha com tempos de outrora quando ditava as regras em territórios
alheios, dizendo quem podia ser, existir, estar, pertencer.
Pedras para reabilitar ridículas
estruturas coloniais
Um Portugal que continua a
manter parte da sua população nas penumbras da história,
confinados, restringidos a uma vida indigna e injusta. Um Portugal
que renega os seus próprios nacionais a não ser que tenham
qualidades excepcionais e saibam manter uma performance de
excelência. Sobre isto, e faço aqui um parênteses, o futebol
ensina muita coisa, na medida em que nos faculta genuínos retratos
sociais, revelando de forma crua, a hipocrisia deste país. Vem-me à
mente o nome de Éder.
O Portugal que antes dizia: “Nem
mais um soldado para as colónias”, é o mesmo que hoje reclama
pedras e mais pedras para reabilitar ridículas estruturas coloniais.
O jardim da Praça do Império foi reabilitado praticamente às
vésperas das comemorações dos 50 anos da “revolução”. Este
Portugal que todos os anos, no 25 de Abril, exibe cravos na lapela, é
o mesmo onde o hino e a bandeira nacionais são mantidos intactos e
intocáveis pelos guardiões da memória quinhentista.
O Tarrafal, o campo da morte
lenta
Não é irónico que um cidadão
português, negro, que não se revê nesses símbolos nacionais,
usufruindo da (suposta) liberdade de Abril, para tecer críticas seja
judicialmente condenado a pagar uma multa ? Pois é. O artigo 332 do
código civil diz o seguinte: “Quem publicamente, por palavras,
gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação
com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino
nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao
respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois
anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Ora, também no tempo da PIDE,
havia coisas assim, escritas na lei, que restringiam a liberdade e
erigiam o cidadão “revoltoso” à condição de criminoso. O
colono que não prestava juramento à bandeira portuguesa, era um
traidor do Estado. Criticar o Estado colonial e fascista, levou
muitos ao terrível campo de morte lenta, Tarrafal.
Este “Portugal dos Pequenitos”
que fala de irmandade e de conexões lusófonas (uma caricatura da
falhada solução federalista”) é o mesmo que se descreve a si
mesmo nos manuais escolares como civilizador, e os outros como
“coisas a civilizar”.
O crioulo como língua nacional
E o que dizer da marcha do 25 de
Abril que tem início na Avenida da “Liberdade” onde repousa a
estátua do grande patriarca Marquês de Pombal? O Tupi, uma das
línguas do Brasil, foi arrasado pela política linguística
pombalina. Faço mais um parênteses: A língua cabo-verdiana que, em
tempos, sofreu ataques por parte do poder colonial, continua ainda
relegada às margens, não obstante a sua pujança e vitalidade no
tecido social português. Para quando o seu reconhecimento como
língua nacional à semelhança do mirandês? Voltando ao Marquês de
Pombal, o suposto “abolicionista” terá afinal exercido um
“humanismo” bastante parcial e utilitarista, ao desviar o
comércio escravocrata para o Brasil. No contexto dos 50 anos do 25
de abril, Marcelo Rebelo de Sousa que, em Gorée, omitiu esse facto,
voltou a falar da escravatura e da colonização, afirmando que
Portugal tem o dever de pagar reparações.
As reparações não são
mediáticas
As discussões sobre as
reparações no mundo têm um longa história, e prática. Em
Portugal, num período mais recente, foram levadas a cabo pela então
deputada Joacine Katar Moreira à Assembleia da República
Portuguesa, mas parece que só agora, devido às declarações de
Marcelo, o país e todo o mundo (branco) tem algo a dizer. O que não
deixa de ser irónico quando este mesmo Presidente associou a
lentidão aos orientais. E, de repente, todos temem e se indignam,
apressando-se a demonstrar o quão ridículo é falar hoje de
reparações. Nada surpreendente para um país que se diz herói do
mar e clama uma imortalidade imaginada a partir das invasões e dos
massacres. Que este tipo de discussões estejam a acontecer no
contexto do cinquentenário do fim da ditadura do Estado Novo (talvez
seja o termo mais interessante que revolução), informa-nos muito
sobre as continuidades coloniais que estão empenhadas nas
instituições, é certo, mas também nas mentes e nos corações dos
portugueses supostamente “de bem”.
O poder de exigir e de obter.
O debate das reparações é
complexo. Longe de ser um mero tema mediático ou discurso
político-académico, é (deveria ser) uma acção que envolve muita
gente, lugares, contextos e temporalidades. Não se trata de uma
agenda que “Portugal deve liderar”, como diz o Presidente Marcelo
Rebelo de Sousa. Existem várias dimensões, sobretudo geopolíticas
que exigem dos “danados” uma agência e protagonismo
inegociáveis. Por outras palavras, é preciso poder. O poder de
exigir e de obter. Fora disto estaremos apenas a “apelar,
ingenuamente, ao coração dos opressores”. No início deste ano,
realizou-se uma conferência no Porto sobre a questão das
reparações. Do encontro, resultou um documento intitulado
“Declaração do Porto: Reparar o Irreparável” com 20 propostas
concretas que resumem reivindicações de longa data dos movimentos e
pessoas negras em Portugal. São pautas que muita gente terá
considerado mirabolantes, descabidas, irrealizáveis. Para quem os
colocou em papel, manifestam pelo contrário, o poder de reivindicar
sem fazer concessão. O mesmo poder que tem colocado movimentos
sociais como Vida Justa nas ruas, exigindo melhores condições de
vida mormente em termos de salário, habitação e saúde, para as
pessoas dos bairros precarizados.
Uma sociedade cínica que mente
a si própria.
Reparar passa por colocar no
topo da agenda política as exigências deste tipo de organizações
de base. Reparar passa também por dar um rosto mais de abril aos
espaços públicos na medida em que, neste Portugal da mitomania, em
que a negação é política de Estado, proliferam espaços de
violência simbólica e histórica.
Este é um país com uma
sociedade cínica que, a cada 25 de Abril, mente, e mente a si
própria. São tantas as hipocrisias e tantas as contradições que
os milhares de cravos que circulam pelas ruas já nem cheiram a flor,
petrificaram!
O que significa diz er que o 25
de Abril nasceu em África? Quem são os combatentes anónimos do 25
de Abril? Em Abril de 2023, numa
apresentação em Lisboa, a artista batukadeira Ilda Vaz das
Bandeirinhas pan-africanistas da Boba, face a uma plateia
maioritariamente branca, perguntava: O 25 DE ABRIL NASCEU ONDE? Nós, que lá estivemos,
respondemos em uníssono: África, cientes de que o 25 de Abril é
“uma festa incompleta” enquanto não se reconhecer esta verdade.
Os combatentes anónimos da
causa da ONU
Afirmar que o 25 de abril nasce
em África não tem nada de pretensioso. Significa, sim, que há
verdades a serem escurecidas e reparações históricas ainda a serem
feitas. Significa que, na Guiné-Bissau, o PAIGC e o povo lutaram
para que houvesse Abril. Mais do que isso, significa que, em África,
as lutas foram pela libertação TOTAL e essa totalidade incluía
tanto o colonizado como o colono (como diria Fanon). Em 1971, num
potente discurso pronunciado na Assembleia das Nações Unidas,
Cabral afirmava: “Nós somos os combatentes anónimos da causa da
ONU”. Para Cabral - cuja ausência no Portugal de hoje mostra a
incompletude do 25 de Abril - a luta do PAIGC visava defender os
valores fundamentais da humanidade. Valores esses que, curiosamente,
Portugal e toda a Europa sempre afirmaram ser os legítimos
herdeiros. Valores celebrados em 25 de Abril.
Sim, o povo guineense e o PAIGC
lutaram por todos nós. São os combatentes anónimos da Revolução
dos Cravos. Ao lutar contra o colonialismo que os oprimia estavam a
lutar também por Portugal, pelos portugueses e pelo mundo. Porque a
sua noção de liberdade era a de um universalismo “verdadeiramente
universal”. E é esta a particularidade da luta dos povos
oprimidos. São lutas cuja contextualidade não exclui a sua
universalidade. São lutas destinadas a fazer tremer as bases de
todos os sistemas-mundo opressivos.
O desaparecimento do
colonialismo
Dizer que o 25 de Abril nasceu
em África significa reconhecer que o colonialismo e o fascismo foram
efectivamente derrotados e destruídos, mas não extinguidos. Dos
escombros e das “latas de lixo da história” podem sempre
ressurgir todo o tipo de monstros. “Le ventre est encore fécond,
d’où a surgi la bête immonde”, relembra-nos Brecht. Aliás, a
propósito, Cabral já dizia que o desaparecimento de Salazar não
significaria o desaparecimento do colonialismo [ nem do fascismo]. O
crescimento da extrema-direita em Portugal e em toda a Europa e as
várias continuidades coloniais, mostram o quão acertada é esta
afirmação.
Dizer que o 25 de Abril nasceu
em África é também um lembrete e uma mensagem de esperança.
Informa-nos de que o chão africano é fértil em lutas por
liberdades e é de África que saem as grandes lutas pelo futuro da
humanidade. Os espíritos revolucionários africanos não cessam de
inspirar e contagiar o mundo. Isto é também um conselho aos
movimentos negros da diáspora de que a “reafricanização dos
espíritos” é um outro sinónimo do mote pan-africanista “back
to África”. Tal como a descolonização, o retorno é um
movimento, uma virada, uma nova mirada, um projecto político e
epistemológico (e não um mero ato migratório como infelizmente,
muito se pensa).
Os cravos e os jardins das "casas" portuguesas
“O 25 de abril nasceu em
África” é, sobretudo, uma afirmação política que coloca África
e os africanos no centro de conquistas, cuja participação não lhes
é reconhecida. É outra forma de dizer que: Sabemos! Não nos
esquecemos! Importa ainda lembrar que os
trabalhadores e as trabalhadoras africanas em Portugal, assim como
todo o movimento negro, têm sido os guardiões, os cuidadores, os
combatentes permanentes, das liberdades de abril… ainda que
sistematicamente excluídos.
Dizer que o 25 de Abril nasceu
em África é relembrar uma dívida ainda por pagar em Portugal cujas
colónias internas, bem antes do 25 de Abril de 1974, já tinham as
suas zonas libertadas, estas Áfricas daqui onde a luta que hoje é
celebrada foi também imaginada. Uma batucadeira, empregada de
limpeza, perguntou O 25 DE ABRIL NASCEU ONDE e a sua indagação fez
justiça a milhares de combatentes anónimos da revolução.
No contexto dos 50 anos do 25 de
Abril, marcados pelo avanço do racismo, da xenofobia e da negação
enquanto política de Estado, o desafio ficou lançado. Pergunta-te Portugal! Quiçá
nas perguntas nos encontremos… num Abril diferente sem capitães
nem guardiões. Um Abril de portas escancaradas, ou melhor ainda, sem
portas. Porque, afinal, as flores da revolução não crescem em
vasos nem nos jardins de uma outra “casa portuguesa”.
As flores da revolução são
espécies fugitivas que invadem as ruas, procurando os matos, as
florestas e territórios mais fecundos à vida. São flores que
brotam nas fissuras abissais e na terra batida das “zonas de não
ser”, espaços segregados onde habitam aqueles que dizem não! e
“que recusam o esquecimento como método”, aqueles que polemizam
os vales da morte, e conhecem a arte do enraizamento e do
desabrochamento.
Que, sob a tumba dos combates
anónimos, brotem cravos, lilases e jasmins de todas as cores. Não
há revolução sem reparação!
Opinião / Site Buala