É notável, para quem folheia
todos os dias o Correio da Manhã, a quantidade e regularidade com
que surgem notícias sobre casos de corrupção envolvendo autarcas e
empresas, todas do mesmo concelho. Muitas vezes são amigos de longa
data ou já estiveram dentro e fora da política, praticando a tal
técnica de “portas giratórias”. Normalmente, são dinheiros
públicos, provenientes das câmaras e que, em manobras mais ou menos
discretas, acabam por ir parar ao cofre das empresas. A
“transferência” destes dinheiros é feita, regra geral, através
de concursos públicos talhados à medida da empresa A ou da empresa
B.
Os “bons” autarcas, os que
são useiros e vezeiros nestas práticas, têm sempre o cuidado de
deixar alguns euros para empresas que não fazem parte do sistema,
para que não haja protestos suficiente sonoros num jornal lá da
terra ou queixas judiciais.
Esses, não comem tudo e até
deixam alguma coisa para os outros – uma prática de elogiar,
porque revela que a ganância tem limites, para quem é mais
inteligente ou hábil. Graças a este tipo de compadrios, a língua
portuguesa foi enriquecida, já lá vão muito anos, com um novo
verbo: “Isaltinar”. Neste episódio, funcionaram mal duas coisas:
uma excessiva ganância e alguém que se abespinhou, por razões que
ignoro. Mas o autarca em causa, cumprida a pena, saiu da cadeia,
triunfante e sem mostrar o mínimo sentimento de culpa. Fez-me
lembrar, na altura, uma animada campanha eleitoral no Brasil, onde um
candidato sincero tinha um slogan delicioso: “Eu roubo mas faço!”
Infelizmente, em Portugal, há a tendência de quase todos os
autarcas se assumirem como virgens pudicas, jurando e trejurando,
nas campanhas eleitorais, que só irão trabalhar para o povo e
desenvolver a terrinha, com mais algumas rotundas, centros culturais
e pavilhões gimnodesportivos.
Mas se hoje em dia a situação
não é grande coisa, no que diz respeito a autarcas e negócios,
apenas com 308 concelhos, imagine-se como seria quando Portugal, há
180 anos, tinha um número de municípios que rondava os 800, como
refere o professor António Cândido de Oliveira, num artigo de
opinião publicado no JN, em 2016. Teria que se arranjar um novo
vocábulo, tipo “Isaltininho”, para classificar alguns desses
autarcas e respectivos concelhos, de reduzida dimensão.
Felizmente
que a reforma territorial dos concelhos, subscrita por Manuel da
Silva Passos, reduziu o número de concelhos a 351 – número que se
mantém quase intocável, hoje, com 308 concelhos. Terá que se
agradecer a Manuel da Silva Passos a hercúlea tarefa de reduzir para
menos de metade as autarquias existentes em Portugal. E agradecer a
Deus que estejamos longe de países como a Espanha (cerca de 8 mil
municípios) a Itália (também à roda dos 8 mil) e o campeão deles
todos, a França, com 36 mil municípios. Se não fosse a gigantesca
talhada dada por Manuel da Silva Passos (e não por Mouzinho da
Silveira, como se costuma referir), lá teríamos que inventar mais
uma palavra para o léxico português: Além dos “Isaltininhos”, que se "alimentavam" em minúsculos concelhos, os “Isaltinhões”, que medravam em concelhos de maior dimensão.
Opinião - O Passar do Tempo / João Tavira