terça-feira, 4 de junho de 2024

“Eu roubo, mas faço!”

É notável, para quem folheia todos os dias o Correio da Manhã, a quantidade e regularidade com que surgem notícias sobre casos de corrupção envolvendo autarcas e empresas, todas do mesmo concelho. Muitas vezes são amigos de longa data ou já estiveram dentro e fora da política, praticando a tal técnica de “portas giratórias”. Normalmente, são dinheiros públicos, provenientes das câmaras e que, em manobras mais ou menos discretas, acabam por ir parar ao cofre das empresas. A “transferência” destes dinheiros é feita, regra geral, através de concursos públicos talhados à medida da empresa A ou da empresa B.

Os “bons” autarcas, os que são useiros e vezeiros nestas práticas, têm sempre o cuidado de deixar alguns euros para empresas que não fazem parte do sistema, para que não haja protestos suficiente sonoros num jornal lá da terra ou queixas judiciais.

Esses, não comem tudo e até deixam alguma coisa para os outros – uma prática de elogiar, porque revela que a ganância tem limites, para quem é mais inteligente ou hábil. Graças a este tipo de compadrios, a língua portuguesa foi enriquecida, já lá vão muito anos, com um novo verbo: “Isaltinar”. Neste episódio, funcionaram mal duas coisas: uma excessiva ganância e alguém que se abespinhou, por razões que ignoro. Mas o autarca em causa, cumprida a pena, saiu da cadeia, triunfante e sem mostrar o mínimo sentimento de culpa. Fez-me lembrar, na altura, uma animada campanha eleitoral no Brasil, onde um candidato sincero tinha um slogan delicioso: “Eu roubo mas faço!” Infelizmente, em Portugal, há a tendência de quase todos os autarcas se assumirem como virgens pudicas, jurando e trejurando, nas campanhas eleitorais, que só irão trabalhar para o povo e desenvolver a terrinha, com mais algumas rotundas, centros culturais e pavilhões gimnodesportivos.

Mas se hoje em dia a situação não é grande coisa, no que diz respeito a autarcas e negócios, apenas com 308 concelhos, imagine-se como seria quando Portugal, há 180 anos, tinha um número de municípios que rondava os 800, como refere o professor António Cândido de Oliveira, num artigo de opinião publicado no JN, em 2016. Teria que se arranjar um novo vocábulo, tipo “Isaltininho”, para classificar alguns desses autarcas e respectivos concelhos, de reduzida dimensão. 

Felizmente que a reforma territorial dos concelhos, subscrita por Manuel da Silva Passos, reduziu o número de concelhos a 351 – número que se mantém quase intocável, hoje, com 308 concelhos. Terá que se agradecer a Manuel da Silva Passos a hercúlea tarefa de reduzir para menos de metade as autarquias existentes em Portugal. E agradecer a Deus que estejamos longe de países como a Espanha (cerca de 8 mil municípios) a Itália (também à roda dos 8 mil) e o campeão deles todos, a França, com 36 mil municípios. Se não fosse a gigantesca talhada dada por Manuel da Silva Passos (e não por Mouzinho da Silveira, como se costuma referir), lá teríamos que inventar mais uma palavra para o léxico português: Além dos “Isaltininhos”, que se "alimentavam" em  minúsculos concelhos, os “Isaltinhões”, que medravam em concelhos de maior dimensão.

Opinião - O Passar do Tempo / João Tavira


 

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