Ainda em 1974, o dispositivo
militar português na Guiné-Bissau começou a ser desmantelado. Os
quartéis foram esvaziados e as tropas, concentradas em Bissau,
começaram a partir para a “metrópole”, como então se dizia. O
Batalhão de Comandos Africanos, ao assistir a esta debandada,
revoltou-se e barricou-se no quartel de Brá, exigindo falar com o
Comandante-Chefe, o brigadeiro Carlos Fabião.
Foi uma reunião complicada, com
os comandos alinhados na parada e Carlos Fabião a tentar acalmá-los,
com um discurso titubeante, garantindo que não ia haver problemas
com o PAIGC, que iam ser feitos cursos de pescadores e carpinteiros,
para lhes permitir voltar à vida civil
Começou a chover e Carlos
Fabião sugeriu que fossem para dentro do quartel. Recebeu a resposta
óbvia e habitual: “Chuva civil não molha militares”
Alguns dos elementos mais
corajosos interpelaram directamente o brigadeiro: “Vocês estão a
ir embora, nós também queremos ir – embarca um soldado branco,
embarca um soldado preto ao mesmo tempo.”
Carlos Fabião viu-se numa
situação complicada, com os comandos a rodearem o seu carro e as
vozes de indignação a subir de tom. O brigadeiro optou pela fuga,
correndo para o carro, onde estava o motorista. Nessa corrida, os
comandos formaram duas alas e Carlos Fabião abandonou o quartel
debaixo de uma chuva de chapadas e pontapés, até conseguir entrar
no carro. O ajudante de campo, um oficial da Marinha, nem esperou
pela viatura, foi a correr até Bissau.
Os comandos africanos perceberam
que estavam a ser traídos e resolveram vender caro a vida. Foram aos
paióis, mas as G-3 tinham sido sabotadas e o mesmo acontecia com as
granadas, inutilizadas. Depois de alguns dias de impasse, o comando
de Bissau chamou os elementos do Batalhão e passou-lhes uma guia de
marcha, com instruções para se apresentarem no seu quartel, em Brá, no mês de
Janeiro – isto quando já se sabia que os militares portugueses
deixariam a Guiné-Bissau antes de 14 de Setembro, data em que se
comemorava o aniversário da sua declaração de independência, em
Madina do Boé.
A guia de marcha era um
documento simples, com o nome do soldado, patente, data de início
das férias e regresso a Brá. Em cada guia de marcha, da meia-dezena
que vi, estava apenas um rabisco imperceptível, onde deveria estar o
nome do oficial que assinava a ordem.
Ao mesmo tempo, os salários dos
comando africanos foram pagos, até janeiro. Confiantes na palavra
dos oficiais portugueses e no documento que tinham nas mãos, a
maioria dos comandos regressou às sua tabancas (aldeias) para gozar
um período de férias, com os bolsos cheios de dinheiro.
Em janeiro de 1975, os comando
africanos começaram a tentar regressar a Brá, mas encontraram o
quartel ocupado por forças do PAIGC. Em desespero de causa,
dirigiram-se à embaixada portuguesa e exigiram falar com o
embaixador. Este telefonou aos responsáveis do PAIGC, dando conta
da situação – largas dezenas de comandos concentrados diante da
embaixada. O PAIGC ordenou imediatamente que uma força dos seus
soldados fosse para lá, a fim de fazer debandar os comandos
africanos – força essa que incluía uma dúzia de chaimites.
A partir daí, foi o descalabro
total. Os comandos fugiram, tentando escapar ao cerco de PAIGC, cujas
forças lhes deram 10 minutos para dispersar, caso contrário abriam
fogo. A maioria conseguiu regressar às suas tabancas, mas durante
quase um ano, o PAIGC perseguiu e fuzilou largas dezenas de comandos e
membros das milícias.
Em 1981, era eu jornalista do
semanário “Tempo” e mandaram-me falar com dois indivíduos
africanos, na sala de reuniões. Foi assim que conheci o tenente
Bailo Djau e o soldado
Demba Embaló. Ambos tinham conseguido escapar ao PAIGC, através do
Senegal. A viagem de Bailo Djau foi uma aventura digna de se contar.
Sem dinheiro nem documentos, passou para o Senegal, para a região de
Casamance, onde grassava uma guerra de guerrilha de um movimento
separatista.
Atravessou o Senegal e conseguiu chegar à Mauritânia,
ao porto de Nouadhibou. O seu objectivo era arranjar forma de
apanhar, clandestinamente, um navio que o levasse a Portugal. De
repente, deu de caras com um navio de bandeira portuguesa. O capitão
era branco e a restante população africana.
Bailo Djau chegou-se
discretamente junto do capitão e disse-lhe: “Sou comando africano
da Guiné-Bissau, leve-me para Portugal” O capitão do barco
limitou-se a fazer sinal para entrar para o porão. Passadas algumas
semanas, o barco pesqueiro ancorava no porto de Lisboa.
Bailo Djau ultrapassou a
barreira dos polícias fiscais com a mesma frase: “Sou comando
africano da Guiné”. Saído do porto, apanhou o primeiro táxi que
viu e disse ao motorista: “Para o Batalhão de Comandos, por
favor”. Chegado à porta de armas, perfilou-se, fez continência à
sentinela e apresentou-se: “Tenente Bailo Djau, Batalhão de
Comandos Africanos da Guiné-Bissau.” Entrou imediatamente no
quartel e, mal tinha percorrido umas dezenas de metros, cruzou-se
com um dos oficiais portugueses que fazia o enquadramento operacional
das tropas dos comandos africanos – e que lhe pagou o táxi...
Demba Embaló fez um percurso
idêntico, mas foi parar a Marrocos. Nunca me disse como conseguiu
atravessar para Portugal. Na altura escrevi um pequeno artigo cujo
título ainda recordo: “Na guerra, éramos todos iguais”. Estive
alguns anos sem novidades de Bailo Djau. O seu camarada de armas,
Demba Embaló, acabou por me dar uma triste notícia. Bailo Djau
tinha percorrido Portugal, de ponta a ponta, a tentar fazer contacto
com antigos militares da Guiné-Bissau.
Andou por diversos países
europeus, sempre com o mesmo objectivo: reunir financiamento e o maior número
possível de ex-combatentes, para tentar criar uma guerra de
guerrilha, contra o PAIGC, na fronteira Norte. Fez várias incursões
em território guineense, mas acabou por ser traído e foi preso por
uma unidade do exército senegalês. O tenente-coronel que comandava
as tropas senegalesas deu ordens para Bailo Djau ser entregue às
forças do PAIGC. Bailo Djau foi algemado e sentado no banco atrás
do motorista. A dada altura, reparou que o jipe estava a entrar numa
estrada com uma ravina de vários metros. Atirou-se ao condutor,
virou subitamente o volante e o jipe despencou mais de uma dúzia de
metros. Os soldados senegaleses que iam no jipe de escolta, alguns metros atrás, desceram a ravina. Nenhum dos quatro passageiros sobreviveu, incluindo Bailo Djau.
Notícias / Paulo Reis