quinta-feira, 6 de junho de 2024

Comandos africanos da Guiné-Bissau: a traição dos oficiais portugueses

  

Ainda em 1974, o dispositivo militar português na Guiné-Bissau começou a ser desmantelado. Os quartéis foram esvaziados e as tropas, concentradas em Bissau, começaram a partir para a “metrópole”, como então se dizia. O Batalhão de Comandos Africanos, ao assistir a esta debandada, revoltou-se e barricou-se no quartel de Brá, exigindo falar com o Comandante-Chefe, o brigadeiro Carlos Fabião.

Foi uma reunião complicada, com os comandos alinhados na parada e Carlos Fabião a tentar acalmá-los, com um discurso titubeante, garantindo que não ia haver problemas com o PAIGC, que iam ser feitos cursos de pescadores e carpinteiros, para lhes permitir voltar à vida civil

Começou a chover e Carlos Fabião sugeriu que fossem para dentro do quartel. Recebeu a resposta óbvia e habitual: “Chuva civil não molha militares”

Alguns dos elementos mais corajosos interpelaram directamente o brigadeiro: “Vocês estão a ir embora, nós também queremos ir – embarca um soldado branco, embarca um soldado preto ao mesmo tempo.”

Carlos Fabião viu-se numa situação complicada, com os comandos a rodearem o seu carro e as vozes de indignação a subir de tom. O brigadeiro optou pela fuga, correndo para o carro, onde estava o motorista. Nessa corrida, os comandos formaram duas alas e Carlos Fabião abandonou o quartel debaixo de uma chuva de chapadas e pontapés, até conseguir entrar no carro. O ajudante de campo, um oficial da Marinha, nem esperou pela viatura, foi a correr até Bissau.

Os comandos africanos perceberam que estavam a ser traídos e resolveram vender caro a vida. Foram aos paióis, mas as G-3 tinham sido sabotadas e o mesmo acontecia com as granadas, inutilizadas. Depois de alguns dias de impasse, o comando de Bissau chamou os elementos do Batalhão e passou-lhes uma guia de marcha, com instruções para se apresentarem no seu quartel, em Brá, no mês de Janeiro – isto quando já se sabia que os militares portugueses deixariam a Guiné-Bissau antes de 14 de Setembro, data em que se comemorava o aniversário da sua declaração de independência, em Madina do Boé.

A guia de marcha era um documento simples, com o nome do soldado, patente, data de início das férias e regresso a Brá. Em cada guia de marcha, da meia-dezena que vi, estava apenas um rabisco imperceptível, onde deveria estar o nome do oficial que assinava a ordem.

Ao mesmo tempo, os salários dos comando africanos foram pagos, até janeiro. Confiantes na palavra dos oficiais portugueses e no documento que tinham nas mãos, a maioria dos comandos regressou às sua tabancas (aldeias) para gozar um período de férias, com os bolsos cheios de dinheiro.

Em janeiro de 1975, os comando africanos começaram a tentar regressar a Brá, mas encontraram o quartel ocupado por forças do PAIGC. Em desespero de causa, dirigiram-se à embaixada portuguesa e exigiram falar com o embaixador. Este telefonou aos responsáveis do PAIGC, dando conta da situação – largas dezenas de comandos concentrados diante da embaixada. O PAIGC ordenou imediatamente que uma força dos seus soldados fosse para lá, a fim de fazer debandar os comandos africanos – força essa que incluía uma dúzia de chaimites.

A partir daí, foi o descalabro total. Os comandos fugiram, tentando escapar ao cerco de PAIGC, cujas forças lhes deram 10 minutos para dispersar, caso contrário abriam fogo. A maioria conseguiu regressar às suas tabancas, mas durante quase um ano, o PAIGC perseguiu e fuzilou largas dezenas de comandos e membros das milícias.

Em 1981, era eu jornalista do semanário “Tempo” e mandaram-me falar com dois indivíduos africanos, na sala de reuniões. Foi assim que conheci o tenente Bailo Djau e o soldado Demba Embaló. Ambos tinham conseguido escapar ao PAIGC, através do Senegal. A viagem de Bailo Djau foi uma aventura digna de se contar. Sem dinheiro nem documentos, passou para o Senegal, para a região de Casamance, onde grassava uma guerra de guerrilha de um movimento separatista. 

Atravessou o Senegal e conseguiu chegar à Mauritânia, ao porto de Nouadhibou. O seu objectivo era arranjar forma de apanhar, clandestinamente, um navio que o levasse a Portugal. De repente, deu de caras com um navio de bandeira portuguesa. O capitão era branco e a restante população africana.

Bailo Djau chegou-se discretamente junto do capitão e disse-lhe: “Sou comando africano da Guiné-Bissau, leve-me para Portugal” O capitão do barco limitou-se a fazer sinal para entrar para o porão. Passadas algumas semanas, o barco pesqueiro ancorava no porto de Lisboa.

Bailo Djau ultrapassou a barreira dos polícias fiscais com a mesma frase: “Sou comando africano da Guiné”. Saído do porto, apanhou o primeiro táxi que viu e disse ao motorista: “Para o Batalhão de Comandos, por favor”. Chegado à porta de armas, perfilou-se, fez continência à sentinela e apresentou-se: “Tenente Bailo Djau, Batalhão de Comandos Africanos da Guiné-Bissau.” Entrou imediatamente no quartel e, mal tinha percorrido umas dezenas de metros, cruzou-se com um dos oficiais portugueses que fazia o enquadramento operacional das tropas dos comandos africanos – e que lhe pagou o táxi...

Demba Embaló fez um percurso idêntico, mas foi parar a Marrocos. Nunca me disse como conseguiu atravessar para Portugal. Na altura escrevi um pequeno artigo cujo título ainda recordo: “Na guerra, éramos todos iguais”. Estive alguns anos sem novidades de Bailo Djau. O seu camarada de armas, Demba Embaló, acabou por me dar uma triste notícia. Bailo Djau tinha percorrido Portugal, de ponta a ponta, a tentar fazer contacto com antigos militares da Guiné-Bissau. 

Andou por diversos países europeus, sempre com o mesmo objectivo: reunir financiamento e o maior número possível de ex-combatentes, para tentar criar uma guerra de guerrilha, contra o PAIGC, na fronteira Norte. Fez várias incursões em território guineense, mas acabou por ser traído e foi preso por uma unidade do exército senegalês. O tenente-coronel que comandava as tropas senegalesas deu ordens para Bailo Djau ser entregue às forças do PAIGC. Bailo Djau foi algemado e sentado no banco atrás do motorista. A dada altura, reparou que o jipe estava a entrar numa estrada com uma ravina de vários metros. Atirou-se ao condutor, virou subitamente o volante e o jipe despencou mais de uma dúzia de metros. Os soldados senegaleses que iam no jipe de escolta, alguns metros atrás, desceram a ravina. Nenhum dos quatro passageiros sobreviveu, incluindo Bailo Djau. 

Notícias / Paulo Reis

 

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