A existência de um número apreciável de imigrantes ilegais, em Macau, era uma realidade conhecida de todos, desde as altas instâncias do poder até ao cidadão comum. A contratação de ilegais como empregadas domésticas era algo considerado normal. Todas as famílias portuguesas tinham uma empregada nessa situação. Fiz o mesmo, nos primeiros anos em que residi em Macau. As empregadas ilegais evitavam ir à rua, onde corriam sempre o risco de serem apanhadas em operações de controle da polícia. Essas operações eram aproveitadas por alguns membros da polícia para extorquir dinheiro às ilegais, a fim de as deixar ir em liberdade.
Ninguém sabia, na altura
quantos ilegais existiriam em Macau mas dados dos serviços de
informações da Polícia de Segurança pública (PSP) asseguravam-me
que o número devia rondar os 50 mil. De acordo de um estudo de Chan
Chan U (“A Legalização de Imigrantes Ilegais em Macau
(1982-1990): Evolução e Consequências”) o número rondaria os 30 mil.
Em 1982, o Governo de Macau tentou encontrar uma solução parcial, lançando uma operação de legalização dos estudantes indocumentados. A operação incluía também os trabalhadores indocumentado, por pressão as associações industriais e comerciais, dependentes dessa mão-de-obra barata para a sua actividade económica. Foi feito um levantamento, ainda em 1982 e o número de ilegais registados foi de cerca de 28 mil, incluindo os agregados familiares.
A esses 28 mil era preciso juntar cerca de 3 mil membros dos agregados familiares destes trabalhadores. O número de pessoas indocumentadas que integravam os agregados familiares dos residentes legais contratados também era aproximadamente de 3 mil.
No dia 2 de Abril de 1982, de acordo com o estudo de Chan Chan U, as Forças de Segurança de Macau (FSM) divulgaram um comunicado sobre o segundo passo para resolver o problema dos trabalhadores indocumentado: no dia 6, as empresas começariam a registar detalhadamente as informações relativas à identificação dos trabalhadores indocumentado contratados e dos seus familiares e as autoridades policiais, após análise e confirmação, emitiriam “títulos de permanência temporária.
Numa “declaração escrita”, apresentada a 5 de Abril de 1982, as associações comerciais fizeram um apelo à Administração para que resolvesse completamente o problema dos residentes ilegais antes da entrada em vigor das normas relativas à proibição de contratação de pessoas indocumentadas. “Isto porque se trata de uma questão muito complicada e de grande alcance; se não for analisada e estudada com prudência, a segurança social de Macau será absolutamente prejudicada”, advertindo que “o governo será o único responsável”, salienta Chan Chan U. O facto de a Administração não ter resolvido completamente o problema da imigração ilegal naquela altura gerou um outro problema: os trabalhadores inicialmente indocumentado que obtiveram títulos de permanência temporária ou até bilhetes de identidade optaram por trazer ilegalmente para Macau os seus filhos, ou até mesmo pais, irmãos, cônjuge e outros familiares residentes da China Continental, fugindo do longo processo de concessão de salvos-condutos.
Quanto à legalização dos estudantes, a operação anterior tinha tido escassos resultados:de acordo com dados estatísticos incompletos, divulgados no ano de 1986 por Alexandre Ho Si Him, então deputado da Assembleia Legislativa, nas 40 escolas que lhe forneceram as informações pedidas, havia 603 estudantes indocumentado, mais de metade com pais legalmente autorizados a residir em Macau.
Desde a tomada de posse do governador Pinto Machado, primeiro governador nomeado por Mário Soares, após vencer as presidenciais, as relações com os responsáveis das forças de segurança foram pouco amistosas.
Na cerimónia de tomada de posse do novo comandante das FSM, Proença de Almeida, que teve lugar no dia 22 de Julho, Pinto Machado anunciou, pela primeira vez, a sua intenção de resolver o problema da imigração ilegal em duas vertentes: as FSM teriam como missão principal bloquear a entrada de mais imigrantes ilegais e o problema das pessoas indocumentadas em Macau iria ser resolvido, partindo do ponto de vista humanitário.
Nessa mesma cerimónia Proença de Almeida mostrou-se reticente à estratégia definida pelo governador. Numa nota enviada aos jornalistas chineses, o comandante das FSM salientava que a legalização do problema dos indocumentado era problema da responsabilidade da Administração, uma vez que se tratava de uma decisão política. A responsabilidade que as FSM assumiam, por entenderem a sua única responsabilidade, era apenas proceder de acordo com a lei no domínio da autorização de permanência e fixação de residência de estrangeiros em Macau.
O processo de legalização dos indocumentados ficou marcado, desde o início, por um braço de ferro entre Pinto Machado e Proença de Almeida que afirmava que “as FSM dispunham de recursos, humanos e materiais suficientes para bloquear a entrada de imigrantes ilegais”, escreve Chan Chan U.
“Como lhe pareceu que as autoridades de segurança pretendiam ignorar a opinião da Administração, Joaquim Pinto Machado decidiu adoptar uma estratégia de 'recolha de dados', semelhante à adoptada para a operação de registo dos trabalhadores indocumentado de 1982 e, ao mesmo tempo, bloquear a entrada de mais imigrantes ilegais, procurando reunir a Administração e as autoridades de segurança para resolver completamente o problema.”
Com a demissão de Pinto Machado, o novo governador, Carlos Melancia, tentou também uma forma de resolver o problema, em diversas fases e de forma parcial, começando com a “Operação Dragão”, “que registou 9.600 pessoas, numa operação pública e 3.992 entre os alunos das escolas do território, refere Chan Chan U. “Depois de um processo de selecção e verificação, foram atribuídos documentos a cerca de 4 mil pessoas.”
Em 1989, o presidente Mário Soares visitou Macau. Durante a visita houve dois episódios caricatos, que colocaram Mário Soares bastante irritado. À saída do Palácio da Praia Grande, entre as muitas pessoas que ali aguardavam o presidente, houve uma agitação, do outro lado da rua, com gritos de mulheres e uma movimentação de elementos das FSM, a cerca de 20 metros do portão do edifício. Nessa altura, eu trabalhava no Gabinete de Comunicação do Governo de Macau e estava perto do local. A agitação surgiu quando duas mulheres tentaram chegar perto do presidente, com os filhos ao colo, pedindo, em chinês, que o presidente as ajudasse a conseguir documentos, como me traduziu um colega, o António Isidro. Curioso sobre o que estava a acontecer, Soares aproximou-se e, de forma até um pouco violenta, afastou dois dos polícias que manietavam as mulheres.
“O que é que passa aqui?” perguntou. “Alguém que traduza!” - tarefa de que o Isidro se encarregou, explicando o desespero das mulheres.
Mário Soares não esteve com meias medidas e perguntou: “Quem é que comanda aqui?” Um dos oficiais portugueses das FSM avançou para perto do presidente. “Faça o favor de tratar da legalização destes mulheres!” disse. Ao seu lado, Carlos Melancia ficou estarrecido. “Olhe que você vai-me arranjar um problema dos grandes.”, alertou.
A visita continuou, com mais um episódio semelhante, perto do Templo de Á-Má.. No caso, foi um dos próprios polícias chineses que fazia parte da escolta do presidente, que se dirigiu a ele, directamente, pedindo-lhe para legalizar a mulher, que não tinha documentos.
“No dia 27 de Março de 1990, o comandante das FSM anunciou que, por despacho do Governador, datado de 23 de Março, iriam ser emitidos, a partir do dia 2 de Abril seguinte, bilhetes de identidade para os pais indocumentado dos menores beneficiados na “Operação Dragão”, envolvendo cerca de 4.200 pessoas.”, adianta o autor do estudo citado. Nessa altura, as más relações entre Carlos Melancia e o comandante das FSM já não eram segredo para ninguém. A gota de água tinha sido a decisão de Melancia em extinguir o Comando das Forças de Segurança de Macau, uma estrutura militarizada, com mais de três dezenas de oficiais do exército português no comando. O objectivo do Governador era transformar as Forças de Segurança numa estrutura policial, mais adequada às suas funções.
AS FSM reagiram mal a esta decisão. Uma das minhas tarefas, no Gabinete de Comunicação Social (GCS) era supervisionar todo o noticiário institucional emitido pelo governo e distribuí-lo pela Comunicação Social portuguesa e chinesa. Na maioria dos casos, notícias “inofensivas”, como alterações de trânsito devido a obras. No dia 18 de Março acontece-me um episódio estranho. Uma das notícias era das FSM e comunicava que iria começar, no dia seguinte a operação de emissão de documentos aos indivíduos registados nas operações anteriores.
Por volta das oito da noite, recebo um telefona de um dos oficias superiores das FSM, a perguntar-me se essa notícia já tinha sido distribuída. Confirmei dizendo-lhe que a nossa única tarefa, nessa matéria, era distribuir as notícias que nos chegavam das cerca de três dezenas de serviços públicos. Foi então que esse oficial me colocou uma estranha questão: “Sabe se o Governador já leu a notícia?” Disse-lhe que não, que as notícias do dia-a-dia não iam ao gabinete do governador, o GCS tinha autonomia para fazer essa distribuição.
Foi um telefonema estranho, a única vez que um oficial superior das FSM me contactou a propósito de uma notícia. Como refere Chan Chan U, no seu estudo, logo que a notícia foi transmitida pela rádio chinesa, no dia seguinte, começaram a aglomerar-se pessoas, pelas 17 horas, na Avenida de Sidónio Pais, em frente à porta principal da Secção de Identificação do CPSP e, depois de terem sido dispersadas pela polícia, passaram a aglomerar-se na Rua da Praia Grande, diante do Palácio do Governo. O número de pessoas concentradas não parou de aumentar, havendo inclusive autocarros a levar ainda mais pessoas àquele local.” Os motoristas de táxi andavam num corropio a transportar indocumentado, sem lhes cobrar a viagem.
Em poucos minutos largas centenas de pessoas estavam amontoadas diante do Palácio do Governo, exigindo a atribuição de documentos – uma intenção causada por uma percepção incorrecta do conteúdo da notícia das FSM. O meu escritório ficava a 200 metros do Palácio do governo e fui alertado pelo mesmo colega, o António Isidro, sobre a acumulação de gente diante do Palácio da Praia Grande. Bilingue, nascido em Macau, o Isidro conhecia o território como ninguém e fez-me um alerta: “Olha que isto pode ser complicado”.
Meia-hora depois, percebi esse alerta: os autocarros não paravam de chegar, com mais gente – uma “operação” montada pelas seitas locais. Isso era visível, uma vez que os polícias de guarda ao Palácio, nem sequer interpelavam os condutores e deixavam-nos circular livremente, estacionar diante do palácio, despejar os passageiros e partir para nova viagem.
Com o número de pessoas a aumentar, ultrapassando os milhares, o ambiente começou a ser de crise, no interior do Palácio da Praia Grande. As portas foram fechadas e eu mais o Isidro ficámos isolados, no átrio da entrada, protegidos por pouco mais de duas dezenas de polícias. A dada altura, alguns dos manifestantes começaram a colocar faixas brancas, atacadas à cabeça, com caracteres chineses. “Vão fazer greve de fome”, avisou-me o Isidro. Um dos polícias, macaense, foi chamado para se dirigir à multidão, numa tentativa de os acalmar, mas o seu discurso não produziu efeitos e ele regressou ao interior do Palácio da Praia Grande. Minutos depois, sou chamado ao interior do palácio e entregam-me 30 ou 40 folhas A/4, para distribuir aos manifestantes, com um comunicado que nem sequer li.
Quando
saímos para o átrio, a situação esteve perto de se descontrolar.
A multidão entrou num frenesim, procurando ultrapassar a barreira
policial. O António Isidro percebeu imediatamente o problema: “Eles
pensam que este papéis são documentos para se legalizarem. Atire-os
para o meio deles.” Durante alguns minutos assistimos a uma
violenta luta, entre grupos de manifestantes a tentar obter aquilo
que eles julgavam ser documentos de identificação. Os manifestantes
exigiam ser recebidos pelo governador ou por alguém do governo que
lhes resolvesse o problema da documentação. A proposta foi aceite e
mandaram-nos a nós – eu e o Isidro – escolher a delegação. A
informação provocou uma confusão enorme e alguma pancadaria, com
dezenas de manifestantes a exigirem fazer parte da delegação. “Isto
resolve-se à chinesa” comentou António Isidro. Dirigiu-se ao
grupo mais violento, protegido pela barreira policial,
chamou-os e disse: “Três homens e três mulheres – escolham
vocês ou não há reunião”, disse. A reunião fez-se, não sei com quem, mas os resultados foram nulos.
Nessa altura, já havia dezenas de jornalistas estrangeiros – a BBC e a ABC, uma dúzia de correspondentes de jornais internacionais, apenas para citar alguns - vindos de Hong Kong. Concentraram-se numa zona já no limítrofe da multidão de ilegais. Ali perto, dois caros da polícia estavam estacionados, junto à rua que dava acesso ao palácio. Dirigi-me até lá, porque a hostilidade da multidão estava aumentar.
Foi então que tive o diálogo mais surrealista da minha vida. Um dos polícias chineses chamou-me e disse que havia um oficial português que queria falar comigo, no sistema de intercomunicação da PSP. Peguei no rádio vi-me na situação de militar: “Aqui Paulo Reis, escuto”. Do outro lado ouvi a voz de um dos oficias que conhecia e que fez uma pergunta: “Paulo Reis, é possível tirar os jornalistas daí?”. Fiquei perplexo e calado por alguns segundos. “Tenente-coronel, é mais fácil tirar os manifestantes do que os jornalistas, escuto”, disse eu – mas a conversa ficou por aí.
Entretanto, outros milhares de manifestantes amontoavam-se diante do quartel da Unidade Táctica de Intervenção da Polícia (UTIP), a exigiram também documentos. As mulheres, desesperadas, entregavam os filhos aos polícias que estavam por detrás dos portões, na esperança de que eles pudessem ser registados.
Consegui entrar no quartel e, numa das divisões logo à entrada, deparo-me com algumas dezenas de polícias com bebés e crianças de pouca idade ao colo. A confusão era tão grande que, às tantas, descobri um colega meu, o Paulo Aido, também com uma criança ao colo.
Perto de nós, o comandante da unidade berrava ao telefone com Proença de Almeida, pedindo autorização para deixar os manifestantes entrarem no quartel: “Meu comandante, tenho aqui dentro espaço suficiente para eles”. Do outro lado do telefone, a resposta foi negativa.
Nessa altura, o Governador já se tinha apercebido da gravidade da situação e tomou a única opção que lhe restava: proceder a uma operação de registo completa, de todos os indocumentado Foi estabelecido um novo local – o estádio do Canídromo, onde se realizavam as corridas de galgos - e passada palavra rapidamente, para que os indocumentado seguissem para lá. Fui atrás deles e deparei-me com dezenas de mesas, onde os polícias registavam os dados pessoais de cada um dos ilegais, incluindo im pressões digitais, numa espécie de ticket, dividido em dois por um picotado. Metade ficava com o indocumentado, a outra metade com o polícia, para posterior controle para atribuição de documentos – algo que já ninguém duvidava iria acontecer.
Eu andava de telefone, um daqueles telemóveis de primeira geração que pareciam uns tijolos. Durante algum tempo, fui dando informações, a partir do terreno, a responsáveis da administração. A partir de certa altura, foi-me dado o número de telefone directo do governador e recebi instruções para reportar a ele com “briefings” regulares sobre a situação no terreno.
Carlos Melancia já tinha percebido que as informações provenientes dos oficias responsáveis das FSM não eram fiáveis. Já dentro do Canídromo, fui reportando a situação ao governador. A confusão ainda era grande, com indocumentado a chegarem sem parar. Aí reparei num pormenor: a quase totalidade dos ilegais chegavam descalços, cobertos de lama até à cintura, de tronco nu – sinal de que tinha acabado de chegar da China, através dos lamaçais da zona da ilha de Coloane, local tradicional onde os “cabeças de cobra” (traficantes de pessoas) entregavam a sua “mercadoria”.
A fazerem segurança no Canídromo estavam cerca de três dezenas de estagiários das FSM. A confusão à entrada ainda era grande, por uma razão simples: a polícia em Macau não podia usar cassetetes, desde 1966. Os polícias usavam os cinturões, para controlar a multidão. Essa proibição vinha desde 1966, quando Macau foi controlado por Guardas Vermelhos, durante vários dias – uma reacção ao facto de cidade estar sob domínio colonial e dar abrigo a nacionalistas de Taiwan. Foi aquilo que ficou conhecido pelos “acontecimentos do 1-2-3” A situação agravou-se durante um tiroteio, em frente ao Leal Senado, que provocou oito mortes. A hostilidade dos Guardas Vermelhos aumentou e chegaram ao ponto de proibir os comerciantes chineses de vender quaisquer produtos a portugueses. A utilização “abundante” dos cassetes, durante confrontos com Guardas Vermelhos, levou os responsáveis chineses a proibir que a polícia os utilizasse. Finalmente, foi encontrada uma solução a dois tempos: teria que haver um pedido de desculpas público, do governador e um indemnização às famílias dos mortos. O pedido de desculpas foi o mais humilhante possível: dentro do palácio da Praia Grande, diante dezenas de Guardas Vermelhos e figuras ilustres da comunidade chinesa, o governador Nobre de Carvalho leu o pedido de desculpas, um texto elaborado pelos próprios Guardas Vermelhos.
No Canídromo, por volta das 10 horas, reparei que os ilegais, que continuavam a chegar às centenas, continuavam a ser, claramente, recém-chegados da China e não indocumentados residentes em Macau. Contactei o governador Carlos Melancia, dei-lhe as informações que tinha e ele reagiu com alguma aspereza: “Mas o comandantes das FSM diz-me que tê tudo sob controle." Tive que lhe dizer que não era verdade, nem sequer conseguiam manter um controle mínimo em relação à entrada de novos ilegais. A conversa ficou por ali, mas soube depois que essa foi a informação final, para Carlos Melancia, que decidiu dar ordens para interromper a operação de legalização.
O balanço da “Operação Indocumentados/90” registou um total indocumentados que rondava cerca de 33 mil pessoas
Reportagem / Paulo Reis