O PASSAR DO TEMPO (CRÓNICA) - PAULO REIS
Durante uma reportagem na Guiné-Bissau (África Ocidental), um país devastado por uma violenta guerra civil, tive os cinco minutos mais longos da minha vida, por volta das 17 horas de um dia quente, numa “picada” poeirenta, que atravessava a “terra de ninguém”, entre o posto fronteiriço do Senegal e a localidade de Pirada, já em território da Guiné-Bissau.
Estava de pé, a meio da estrada, braços levantados e mãos cruzadas na parte de trás do pescoço, sentindo o cano de uma metralhadora encostada à nuca. Dei por mim a rezar em silêncio (”Pai nosso que estais no céu...”), lágrimas nos olhos, não por causa da dor de ter outros soldados senegaleses à minha frente, espancando-me com as coronhas das armas, mas porque pensava que o meu filho de 3 anos de idade nunca mais veria o pai.
Na altura, tinha deixado Macau, onde vivera os últimos 11 anos. Comecei a trabalhar no diário “A Capital”. Em 7 de junho de 1998, Ansumane Mané, Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau, foi demitido por suposto contrabando de armas para rebeldes separatistas da região de Casamance no Senegal. No dia seguinte, iniciou uma rebelião militar contra o Presidente, Nino Vieira e foi o princípio de uma sangrenta guerra civil, com algo muito tradicional entre os povos daquele país: cortar a cabeça de inimigos mortos e mantê-los em casa, em um lugar especial, geralmente numa prateleira na sala de estar, como um troféu de guerra
Em 7 de maio de 1999, Nina Vieira foi deposto e Ansumane Mané tornou-se o homem forte da Guiné-Bissau. Duas semanas após o início da rebelião, convenci a editora de “A Capital”, Helena Sanches Osório, a mandar-me para lá.
O ex-presidente da Guiné-Bissau estava na capital, protegido por algumas centenas de soldados leais, com o apoio de um batalhão de pára-quedistas senegaleses. Apanhei o avião em Lisboa e desembarquei em Dakar, a capital do Senegal. Levava comigo uma série de contactos de guineenses, amigos de amigos meus, de Lisboa, e que me poderiam ajudar. Fiquei uns dias em casa de um desses amigos, num bairro fascinante. Os conhecidos e amigos do meu amigo falavam comigo não em crioulo, mas em português. Era um bairro onde se concentravam imigrantes guineenses e onde se viam camisolas do Benfica, Porto e Sporting, penduradas em lugar de destaque, nas cantinas, bares e mercearias. Ao fim de semana, juntavam-se em grupos, nas esplanadas improvisadas, com uma cerveja fresca na mão e o transístor sintonizado nas transmissões da rádio portuguesa. Sabiam ao que é que eu vinha e ajudaram-me imenso.
O primeiro passo daquela autêntica aventura começou às 4 da manhã, num terminal com centenas de carros, nos arredores de Dakar, ainda era noite cerrada. Naquele local concentravam-se as viaturas de transporte informal, a maioria modelos de carrinha Peugeot, completamente lapidadas. Os condutores apregoavam o seu destino e os clientes escolhiam o carro com esse destino. O meu amigo Embaló percorreu as ruas estreitas, aparentemente sem destino, mas acabou por encontrar o que procurava: um condutor amigo, que estacionava sempre no mesmo sítio, e em quem ele tinha confiança para me levar ao meu destino – a fronteira de Pirada, a 600 quilómetros de Dakar.
Esperámos cerca de meia-hora até a lotação do carro estar concluída. Lembro-me que era uma carrinha Peugeot 505, de certeza com mais de 20 anos. Quando tirei o maço de tabaco do bolso, para fumar um cigarro, o condutor chamou-me logo à atenção, dizendo que era proibido fumar por questões de segurança – algo perfeitamente cómico, quando se vai dentro de um carro a cair de podre.
Mas, como sempre, ali funcionava o desenrasque tipicamente africano. Mais ou menos de hora a hora, tínhamos de parar, para o condutor encher o radiador com água dos jerricans que transportava na bagageira do carro.
Era um reabastecimento que eu aproveitava para fumar um cigarro. Parámos numa vilória, por volta da hora do almoço. A refeição era simples: latas de sardinha marroquinas com as mais perfeitas “baguetes”francesas”. Apercebi-me depois de que todo o pão fabricado no Senegal era um resquício da dominação colonial.
A meio do caminho, encontrámos uma outra especificidade africana: uma zona onde a estrada estava cheia de buracos, tapados com terra vermelha. Um grupo de miúdos, a maioria adolescentes, bloqueava a estrada. Descobri depois que era um “negócio” comum: os jovens tapavam os buracos, com terra e depois exigiam um pagamento aos carros que ali circulavam. Se não houvesse pagamento, o carro era corrido à pedrada. Feitas as contas, lá seguimos caminho, com um calor inenarrável.
Chegámos ao destino depois de mais de 12 horas de viagem. A carripana pouco mais dava que 50 quilómetros à hora, com 600 quilómetros de trajecto. Durante toda a viagem, nunca me identifiquei como jornalista, à cautela. Inventei uma história, alegando que tinha família na Guiné-Bissau e estava de férias em Cabo Verde. Preocupados com o destino desses familiares, no meio de uma guerra civil, expliquei que a família em Lisboa me tinha pedido para tentar saber do seu paradeiro.
Acrescentei alguns pormenores verdadeiros – uma boa mentira precisa de alguma realidade factual – e disse aos meus companheiros de viagem que a minha família vivia na cidade de Gabú e eram libaneses. Nesta parte da história, conseguia ser convincente. Uma vizinha da minha mãe era libanesa e estava casada com um português, que tinha feito a tropa na Guiné-Bissau. Expliquei que o marido era meu tio, estabelecendo assim os necessários laços familiares para justificar a viagem. Chegámos a Pirada já de noite e arranjámos lugar para dormir – uma casa com quartos vagos, à laia de pensão, com um colchão de espuma a fazer as vezes de cama. O calor era tão forte que acabei por enrolar a espuma e optar por me deitar no chão de cimento – e calor era algo a que estava habituado, uma vez que nasci em Angola e vivi lá até aos meus 18 anos.
No dia seguinte, já na fronteira, esperámos algumas horas para “tomar o pulso” à situação. A fronteira do lado da Guiné-Bissau estava aberta e as formalidades foram simples. Apanhámos outra carrinha Peugeot para percorrer a meia-dúzia de quilómetros que nos separavam da fronteira senegalesa.
Aí, começaram os problemas. A meio do caminho apanhámos um controle das forças senegalesas. Obviamente que chamei logo a atenção – um branco no meio do nada, a viajar com um grupo de guineenses. Mandaram-me abrir a mochila e viram o computador portátil que levava comigo. A simpatia dos senegaleses, em relação aos portugueses era escassa, porque nos viam como apoiantes do Ansumane Mané.
Semanas antes desta minha viagem, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, tinha ido a Bissau. Atravessou a linha da frente, para contactar com o líder rebelde. Perante as queixas do Ansume Mané, que lamentou não ter meios de comunicar com ninguém, Jaime Gama entregou-lhe um telefone-satélite que um dos elementos da sua delegação trazia consigo – pormenor que não ajudou nada na antipatia dos senegaleses.
Nessa altura, as coisas começaram complicar-se. O meu portátil era um Toshiba, modelo Satélite. Mal se aperceberam disso, os senegaleses tornaram-se extremamente hostis, acusando-me de ser um espião e de ir levar um telefone-satélite às forças do Ansumane Mané. Todos os meus esforços para lhes explicar que aquilo era um computador foram infrutíferos. Mandaram cruzar as mãos na nuca e começaram a espancar-me, com os cinturões, nas costas. Dois dos soldados que estavam à minha frente usaram as coronhas das armas para me agredir. Tudo isto no meio de uma berraria e ameaças que me davam um tiro.
Entretanto, surgiu um jipe, onde vinha um oficial que, soube depois, era capitão.
Decidiu levar-me para o quartel-general do batalhão ali colocado, em território senegalês, para ser interrogado pelo comandante, um tenente-coronal.
Mantive a história que tinha “construído” e tive uma ajuda do capitão, que sabia distinguir um computador portátil de um telefone-satélite. Como me explicou, já tinha feito parte de um destacamento de manutenção da paz, sem me dizer qual o país.
O espancamento tinha acabado, com a presença do capitão e, minutos depois, fui chamado à presença do tenente-coronel. De novo, repeti a história. Dez minutos depois, mandou-me sair e ficar à espera, numa espécie de palhota, com algumas cadeiras, à porta do quartel. Uma hora depois, apareceu um civil, um homem dos seus 50 anos, que me saudou com um ar amigável. Perguntou o que é que estava ali fazer, sem se identificar. Pela centésima vez, contei a história de estar à procura da família. E dessa vez, fui salvo pelos pormenores verdadeiros que tinha introduzido na história. Quando referi o nome da amiga da minha mãe, ele sorriu e disse-me: “Conheço-a bem, andámos juntos na escola. Ainda a semana passada estive com os pais dela, em Gabú. Diga-lhes que está tudo bem...”
Aliviado, como é natural, acrescentei mais alguns detalhes, dizendo-lhe que a amiga estava bem, especialmente satisfeita porque a filha tinha sido admitida como bailarina no São Carlos – o que também era verdade.
O ambiente ficou mais relaxado e o meu interlocutor revelou que era coronel das forças armadas, estava do lado do Nino Vieira e tinha-se deslocado à fronteira para vir buscar um contingente de reforços senegaleses, para tentar uma incursão a partir da zona de Pirada. Chamou um dos soldados e mandou-o buscar duas cervejas. Confesso que nunca na vida uma cerveja me soube tão bem.
O coronel das forças guineenses deixou a cerveja a meio e entrou no quartel, penso que chamado pelo comandante do batalhão senegalês.
Pouco depois, formou-se uma coluna de cinco jipes e o tenente-coronel mandou-me entrar no veículo onde ele ia. Deixaram-me na fronteira guineense e o coronel virou-se para mim e deu-me um conselho: “Não te quero ver aqui novamente”. Assenti veemente com a cabeça. Não fazia tensões de ali voltar, de facto. Mas acabei por o fazer, numa segunda incursão, até conseguir entrevistar o líder golpista, Ansumane Mané. Mas isso é outra história.
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