sexta-feira, 15 de agosto de 2025

“A Europa é uma prisão a céu aberto” – entrevista a Mamadou Ba

 

Entrevista do jornal online "Mapa" - 1 de Novembro de 2015

À conversa com Mamadou Ba, activista do Movimento SOS Racismo, procurámos perceber as lógicas históricas que conduziram à génese e persistência da Europa como Fortaleza. A fronteira, sempre vigiada e tantas vezes intransponível está assente, de acordo com Mamadou, “nos limites da capacidade geo-estratégica da Europa” e, como tal, é isso que “temos que interrogar, que não pode existir!”

R. Alves: Há um genocídio em curso às portas da Europa. Podes dizer-nos como é que tudo isto começou, fazendo uma espécie de arqueologia da Europa Fortaleza?

Mamadou Ba: Eu acho que nós podemos dizer, de uma forma genérica, que as fronteiras da Europa – fictícias, políticas e geográficas – se tornaram cemitérios a partir do momento em que a Europa se instalou numa situação de revanche histórica contra os países periféricos, nomeadamente as suas antigas colónias. Já havia mortes na década de setenta, eram poucas e não eram muito publicitadas, porque eram mais ou menos aventureiros que tentavam chegar à Europa através do Estreito de Gibraltar. 

Na altura, havia uma política de recrutamento de trabalhadores, ou seja, o acerto entre o que deveria haver de relação colonial entre a Europa e o resto do mundo era feito indo buscar trabalhadores em massa para trazer para alguns países da Europa, logo a seguir aos Trinta Gloriosos [período entre 1945 a 1975] e onde houve uma industrialização forte (i.e. França, Itália, Bélgica, Alemanha). A Europa reciclou a sua forma de trabalho escravo indo buscar, através de acordos bilaterais, trabalhadores em massa. 

Hoje, a ideia que nós temos é essa narrativa de que as pessoas vêm em massa porque decidiram vir em massa. Não! Alguém criou essa ideia de que havia uma possibilidade de as pessoas virem. Eu sei que para alguns esta comparação é muito forçada, mas ela tem alguma lógica histórica: o que a Europa fez logo a seguir às independências foi o que o faziam os navios negreiros quando iam buscar escravos. Portanto, a lógica da economia da morte, que resulta dessa massificação da imigração, foi uma coisa planeada e planificada por uma necessidade económica capitalista.

Depois, quando a Europa começa a entrar numa fase de algum refluxo económico e, sobretudo, quando começou a perceber que já não havia possibilidade de controlar essas “manadas” – tal como no tempo colonial, ou no tempo da escravatura -, que as pessoas podiam ter alguma mobilidade dentro da prisão que era o seu estatuto e a sua condição de imigrantes, isso começou a criar problemas.

Em finais de setenta, início de oitenta, depois de ter desarticulado também as economias dos países de origem, através das políticas de ajustamento estruturais, decidiu: “Olha, nós vamos também, tal como liberalizamos a economia, vamos liberalizar a mobilidade”, o que implica fazer o quê? Nós criamos mecanismos de filtro, deixamos entrar quando quisermos, como quisermos para fazer duas pressões ao mesmo tempo: pressionar os países de origem – na gestão das saídas e entradas dos seus cidadãos – e pressionar a nossa classe trabalhadora. 

Deixando sempre entreaberta a hipótese de que pode vir uma ameaça de fora e, claro, que a Europa também está instalada na sua genética atitude imperialista. Ela acha que a única forma de poder ter acesso a recursos para alimentar a sua máquina económica é perturbar e destabilizar os países mais periféricos e a partir daí temos a Europa a fazer guerras por procuração no Continente Africano, no Médio Oriente e também no Extremo Oriente, coisa que não se fala muito nas narrativas. 

Tirando a Inglaterra, não temos nenhuma discussão sobre o que acontece, por exemplo, no Extremo Oriente (Malásia, Singapura). E há ali fluxos danados de imigrantes que resultam da herança da política imperialista britânica, tal como no Corno de África e no Próximo ou no Médio Oriente (Somália, Líbano). A própria conivência da Europa com o Estado de apartheid de Israel também cria fluxos migratórios forçados porque cria tensões em que as pessoas se vêem obrigadas a fugir para se salvarem. 

Depois, por um ajuste histórico de posição, logo a seguir à queda do muro de Berlim assistimos à implosão de parte importante dos países que eram limítrofes da Europa dita Ocidental. Com a guerra dos Balcãs isso foi uma forma que a Europa encontrou de arranjar uma desculpa para dizer: “Nós a partir de agora não podemos receber toda a gente”. Depois a Europa, do ponto de vista cultural, massificou uma forma de estar no mundo, ou seja, criou uma certa hegemonia civilizacional e cultural através da massificação da televisão e contou nisso com a conivência dos seus vassalos. 

Os poderes políticos desses países – que foram instalados, a maior parte das vezes, pela Europa ou por interesses europeus – tudo fizeram para criar uma condição de necessidade permanente das populações para aspirarem a ter uma coisa, um modelo de sociedade que não é o delas. E onde é que podem ir buscá-lo? É na Europa. Tal como a Europa fez quando empreendeu o imperialismo e o colonialismo, criou-se a ideia do El Dourado ao contrário.

R. Alves: O que é que achas que tem de colonial esta relação?

Mamadou Ba: A continuidade colonial está patente, primeiro, na própria gestão das relações bilaterais entre a Europa, ou seja, a forma como a Europa decide expandir e retrair a fronteira a seu bel-prazer, consoante o xadrez geopolítico. A Europa decide, às tantas, que pode ter políticas ou programas de gestão das suas fronteiras que vão além fronteira: os acordos bilaterais de admissão passiva de imigrantes, a externalização dos centros de detenção, a militarização e os dispositivos militares que a Europa usa são disso uma prova cabal. 

Por exemplo, o Mare Nostrum, um resquício fascista que tinha a pretensão de que a Europa podia controlar toda a sua fronteira marítima e decidia quem era nosso e quem não era nosso, quem era susceptível de ser ou não salvo. Isto é um instrumento de gestão geopolítica da fronteira. Quando a Europa decidiu que já não queria fazer nem a montante nem a jusante esta vigilância fronteiriça acabou com o Mare Nostrum e criou o Triton, que o que diz, basicamente, é: “Os nossos vizinhos são quase os nossos inimigos, portanto nós não queremos que vocês venham morrer cá, morram lá! O que vamos fazer é: vamos utilizar esses instrumentos para fazer com que as mortes sejam menos visíveis aqui às portas da Europa e que sejam mais escondidas”.

R. Alves: De quando é que datam estes programas? 

Mamadou Ba: A Cimeira de Sevilha (2001) legitimou a ideia de que a imigração já não era um direito mas uma mercadoria. Um Estado podia decidir, quando lhe apetecesse, aceitar ou não o embrulho. Essa era a filosofia. E para dar corpo a isso, inseres um instrumento repressivo e então criou-se a Frontex (2004). Depois tinhas que dar um programa político à Frontex, porque a Frontex é um instrumento militar mas o seu programa político era o Mare Nostrum (2006/2007). 

Depois da tragédia de Lampedusa (2013), a Europa disse: “Não! Isto é demasiado impactante na nossa opinião pública” – os cadáveres a boiarem às portas da Europa – “Isto agora tem que acabar! Eles que morram, morram em alto mar… ou morram lá antes dechegarem cá!”. Então criou o Triton, uma forma de simplesmente evitar que as mortes sejam visíveis aqui na Europa. O Mare Nostrum tinha uma componente repressiva mas tinha uma componente de salvamento porque era inspirado no direito marinho medieval em que os pescadores deviam, por um código de conduta, salvar pessoas que estivessem em perigo em alto mar, independentemente da sua nacionalidade. 

Tudo isso tem um fundo imperialista sabemo-lo, mas também tem uma parte de valor. Perante o perigo, salvar a vida, depois acertar contas. O Triton é o contrário: quanto menos for visível a desgraça, mais podemos tranquilizar as nossas consciências e, sobretudo, as consciências da nossa opinião pública. Aliás, reduziram os meios de salvamento, aumentaram os meios de vigilância, mas à distância, e introduziram uma coisa: o Triton tem previsto nos seus enquadramentos gerais, por exemplo, a possibilidade de haver bombardeamentos de barcos em países de origem dos imigrantes, usando não apenas a Frontex mas também a NATO. Isto chama-se colonialismo belicista. Foi assim que a Europa conquistou e dominou o mundo, com acções de razia e de guerra e esse é o conceito que a Europa vai buscar de novo para aplicar na questão da gestão da imigração.

Depois, logicamente, há a questão da escravatura. Transformar os imigrantes em números é tal e qual o que se fazia com os escravos nas caves dos barcos, que eram “gado”, eram coisas, objectos, não eram pessoas. E aqui nós transmutamos um bocadinho a sofisticação da negação da humanidade, numerizando, quantificando e retirando completamente a hipótese de podermos dizer que essa pessoa é uma pessoa, que tinha um nome e uma história.

(Continua

 

 

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