domingo, 9 de junho de 2024

Revolta na Escola Portuguesa de Macau

  

O Governo português pediu esclarecimentos ao director da Escola Portuguesa de Macau (EPM), depois de vários professores da instituição terem sido dispensados esta semana, disse fonte oficial à Lusa. “O Ministério da Educação, Ciência e Inovação está a acompanhar a situação, tendo solicitado esclarecimentos ao director da Escola Portuguesa de Macau”, afirmou à Lusa o gabinete do ministro Fernando Alexandre.

No início da semana, a direcção da EPM comunicou a pelo menos seis professores que não ia renovar o vínculo laboral com a instituição, alegando motivos de gestão. No departamento de Português, três professores viram esse elo terminado. São todos detentores de bilhete de residente permanente e encontram-se no território ao abrigo de uma licença especial de Portugal para Macau.

Uma petição lançada pela comunidade escolar contra a saída de uma dessas professoras, Alexandra Domingues, representante dos professores junto da direcção da escola, contava esta semana com perto de 900 assinaturas.

A presidente do conselho regional da Ásia e da Oceânia das Comunidades Portuguesas, Rita Santos, considerou “desumana a atitude” da direcção de comunicar o fim do elo profissional “apenas a 27 de Maio”, ou seja, a poucos meses do início do novo ano lectivo, de acordo com a agência Lusa.

“Os conselheiros estão ao lado dos professores despedidos e tudo farão ao seu alcance para repor a justiça e continuar o seu trabalho na Escola Portuguesa de Macau em prol do desenvolvimento educativo” de Macau, escreveu Rita Santos, em comunicado divulgado nas redes sociais.

O director da EPM, no cargo desde Dezembro de 2023, recusou estar em curso qualquer “processo de reestruturação”. Num ‘email’ enviado à Lusa, referiu que todos os anos “ocorrem situações de saídas e entradas de novos docentes”.

“Reforço que as licenças especiais são suscitadas pela direcção da escola e pedidas em plataforma do ME [Ministério da Educação]. Processo normal, que em casos, por vontade do docente, não pretende a renovação da licença especial, em outros, por razões gestionárias, a escola decide não suscitar essa renovação”, escreveu.

A própria Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude do governo de Macau (DSEDJ) esteve na Escola Portuguesa de Macau para recordar à instituição que está obrigada a respeitar as leis laborais. A explicação sobre a deslocação de sexta-feira à EPM foi feita ontem, através de um comunicado, depois de o Governo ter sido questionado por vários órgãos e comunicação social sobre o assunto.”

No mesmo comunicado, a DSEDJ adianta que vai acompanhar a situação e garantiu que o novo pessoal docente só será autorizado, no caso de haver efectivamente necessidade. “A DSEDJ continuará a prestar atenção ao desenvolvimento curricular da escola e à afectação dos professores”, foi apontado, para depois ser indicado que só haverá autorização para contratar novos professores face à “prova das habilitações académicas”, assim como à “efectiva necessidade das contratações face ao número de aulas”.

O presidente da Fundação Escola Portuguesa de Macau, o advogado Neto Valente, em declarações à televisão local (TDM) disse que “não é com abaixo-assinados, com petições e com barulho que se vai resolver o problema da escola”.

“No caso actual, o director Acácio de Brito além da carreira docente que teve, e brilhante, é inspector de ensino. E, portanto, chegou à escola e começou a detectar um sem número de situações que importa corrigir. Isto não é para se fazer com alarme e circunstância pública, é para se fazer com toda a serenidade”, acrescentou Neto Valente. O advogado e presidente da Fundação Escola Portuguesa de Macau acusou ainda a anterior direcção da Escola Portuguesa de Macau, liderada por Manuel Machado, de não ter a confiança da Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude.

“Eu diria que estamos a reconstruir, e já se reconstruiu, um clima de abertura, transparência e de confiança, derivado das boas relações e bons contactos que existem [com DSEDJ]”, concluiu Neto Valente.

Sociedade (Paulo Reis)

sábado, 8 de junho de 2024

Os números (confusos...) da Mutilação Genital Feminina em Portugal

A mutilação genital feminina trata-se de um crime público, que não depende de queixa da vítima, ou seja, qualquer pessoa pode alertar o Ministério Público se tiver conhecimento de um caso.

Uma questão fundamental que tentámos esclarecer tem a ver com uma enorme disparidade de dados, em matéria de casos de MGF, entre as autoridades de Saúde e a Procuradoria Geral da República. As autoridades de saúde - nomeadamente a Direcção Geral de Saúde - avançam um  número de casos sinalizados que ultrapassam largamente as centenas ("No total, desde 2014, as autoridades de saúde registaram 1.091 casos de MGF", refere a DGS, citada pelo jornal Público").  


“A identificação ocorreu em diversos âmbitos: consultas de vigilância da gravidez, parto, puerpério, e em consultas e internamentos nos cuidados de saúde hospitalares e cuidados de saúde primários”, acrescenta a DGS, relativamente apenas a 283 casos identificados entre 2023 e 2024.

Por outro lado, o Observatório Nacional de Violência e Género estima que estejam em risco de serem submetidas à MGF, em Portugal, cerca de 6.500 crianças até 15 anos ou mais. A mesma instituição calcula que perto de 1.800 crianças, na mesma faixa etária, tenham sido submetidas à MGF.

Mas, de acordo com a informação que nos foi fornecida pela Procuradoria Geral da República, entre 2019 e Maio de 2024, foram abertos apenas um total de 15 processos-crime pela prática de MGF, dos quais 12 foram arquivados, estando sob investigação apenas 3 casos. Trata-se de uma disparidade estranha, pelo facto de MGF ser crime público - ou seja, qualquer pessoa que tenha conhecimento desse crime tem a obrigação de o comunicar às autoridades.

O facto é que, em Portugal, "o número de procedimentos criminais instaurados pela prática de MGF não possui expressão estatística, no entanto suspeita-se, pelo trabalho desenvolvido por várias entidades, que esta prática exista entre nós, por termos como residentes algumas comunidades originárias de regiões onde a MGF se encontra disseminada", refere o guia de procedimentos "para Órgãos de Polícia Criminal" nos casos de sinalização de MGF. 


Nesse guia de procedimentos, que teve lugar num encontro em 2012, em Loures, adianta-se que "se for identificada uma situação de risco de MGF, em que a situação analisada não indicia a presença de um perigo iminente, a Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) delibera a instauração de um processo de promoção e proteção e procura obter o consentimento dos pais e mães e a não oposição da criança maior de doze anos, para a aplicação das medidas necessárias, após conclusão da avaliação diagnóstica."

Caso a situação implique a "obtenção de informações mais precisas sobre a urgência da intervenção no caso de risco de MGF, deve efetuar, de imediato, o contato com o Magistrado do Ministério Público e a CPCJ competentes, de modo a garantir a proteção e o encaminhamento da possível vítima para um meio protegido, afastando-a do meio de risco", adianta o guia de procedimentos.
"A competência para a investigação criminal deste crime é do Órgão de Polícia Criminal territorialmente competente - Guarda Nacional Republicana ou Polícia de Segurança Pública - exceto se do crime resultar a morte da vítima, sendo da competência investigatória da Polícia Judiciária", continua o manual.
De entre as entidades a contactar, o guia de procedimentos refere uma lista concreta:

- O Centro de Saúde ou Hospital, em caso de suspeita de prática de MGF recente.
- A CPCJ, para avaliação articulada da urgência da necessidade de intervenção, de acordo com os procedimentos previstos, e permitir, assim, a aplicação de medidas de proteção.
 - O Ministério Público, quando se confirma a prática da MGF ou se for necessária uma intervenção de urgência.
 - O INML, para realização do exame médico necessário.

Num outro estudo - "Guia Prático de Abordagem, Diagnóstico e Intervenção - Maus Tratos em Crianças e Jovens, da Direção-Geral da Saúde" - refere-se que, "a nível Nacional os casos observados devem ser registados na plataforma web designada de 'Registo de Saúde Electrónico - Portal do Profissional” (RSE- PP), anteriormente designada “Plataforma de Dados da Saúde (PDS)”.  Num gráfico que acompanha uma dissertação sobre a MGF, surgem muito mais dados sobre o problema da MGF.
A Gazeta Digital tentou contactar todas as entidades referidas nestes estudos, mas não obteve resposta de nenhuma delas, com excepção da Procuradoria Geral da República. 
 
Sociedade / Paulo Reis

Brevemente: "O Último Governador de Macau" (Sinopse)

 

"O Último Governador de Macau" é um livro onde se traça um retrato pormenorizado do ponto de vista político, social e de segurança, do que foram os anos finais da administração de Rocha Vieira, o último Governador português de Macau, cujo “consulado” ficou marcado por uma constante perseguição dos jornalistas críticos do governo, a quem os membros do governo apelidavam de “anti-patriotas”.

Para citar o assessor de Imprensa do Governador Rocha Vieira, Afonso Camões, Macau era um território onde, "mais do que jornalistas, eram precisos militantes do desígnio nacional". As polémicas entre o Governo e a comunidade portuguesa, as suspeitas sobre o transporte para Portugal de 17 contentores cujo conteúdo nunca foi revelado, a nomeação, como presidente do Tribunal Superior de Justiça, de um juiz adepto e defensor, publicamente, de Mussolini, são alguns dos temas deste livro. Um especial destaque é dado às perseguições a jornalistas que, caso publicassem notícias críticas para a administração eram classificados como “anti-patriotas” e colocados numa espécie de “lista negra”.

No meu caso concreto, quando era director de um pequeno jornal português, a “Gazeta Macaense”, em 1993, fui alvo de 38 queixas-crime, por abuso de liberdade de imprensa e difamação, todas provenientes do presidente do Tribunal Superior de Justiça, Farinha Ribeiras. De notar que esse magistrado, na primeira entrevista que deu à televisão local, afirmou que “Salazar matou muito menos gente” que outros ditadores, adiantou que tinha uma enorme admiração pelo ditador e acrescentou que “os italianos ainda hoje têm saudades de Mussolini, porque os comboios andavam a horas.”

Destaque também para o descontrole verificado na área da segurança. Em 1986, Macau tinha uma média de 4, 5 homicídios por ano. Em 1989, houve 28 homicídios, a quase totalidade a tiro, resultantes de confrontos entre as seitas chinesas. A situação chegou a tal ponto que a Xinhua, a representação diplomática da China em Macau fez um comunicado público, apelando ao governo português de Macau para que resolvesse o problema da segurança.

O descontrole foi tal que o responsável da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, Manuel Apolinário, foi alvo de um atentado a tiro, em plena luz do dia e quase no centro da cidade. Ao entrar para o carro foi atingido com dois tiros no pescoço, mas sobreviveu. Poucas semanas depois, o nº 2 da mesma direcção foi abatido com um tiro na nuca, também no centro da cidade. Para se ter uma ideia mais precisa do que passou em termos de criminalidade, nos anos de governo de Rocha Vieira, até o próprio motorista do secretário-adjunto (equivalente a ministro) da Segurança, Manuel Monge, também foi abatido a tiro.

Outro episódio que teve consequências políticas de grande dimensão foi quando os serviços de Educação decidiram não renovar o contrato (de dois anos) de uma professora que era a represente local da Amnistia Internacional, não obstante o facto de a referida professora ter classificações muito boas, na sua actividade profissional. Vários jornais portugueses referiram o caso, adiantando que se estava perante um “despedimento político”. Na sequência dessas notícias, a Amnistia Internacional escreveu uma carta ao governador Rocha Vieira, inquirindo sobre a fiabilidade dessas notícias.

Este caso levou o próprio presidente Mário Soares a fazer um aviso público a Rocha Vieira. Num encontro com jornalistas portugueses, em Portugal e questionado sobre o assunto, o Presidente da República respondeu numa curta frase: “Quando a Amnistia Internacional fala, é preciso escutá-la...” Os Serviços de Educação recuaram na decisão e a professora continua, até à data, em Macau.

A história pormenorizada da Fundação Jorge Álvares também é referida, neste livro. Tratou-se de uma fundação criada pelo próprio general Rocha Vieira, com 50 milhões de patacas do erário público e sede em Portugal. O objectivo dessa fundação era contribuir para o estreitar de laços entre Portugal e a China. Nos estatutos da fundação estava determinado que o primeiro presidente do Conselho de Curadores da fundação seria o último governador de Macau. Este episódio suscitou reacções muito hostis da parte da comunidade chinesa, chegando ao ponto de um deputado da Assembleia Legislativa (o Parlamento local) proferir um discurso onde acusava Rocha Vieira de ter feito “um autêntico roubo”.

Livro "O Último Governador de Macau" / Sinopse (Paulo Reis)

 

Já sou avô, o Silvestre já chegou!

 
 Pessoal (Paulo Reis)

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Geração de génios

 

No último ano lectivo, de acordo com o semanário Expresso, que cita dados da Direcção-Geral das Estatísticas de Educação e Ciência “em 37 escolas privadas um terço dos alunos teve nota final entre 19 e 20 valores a todas as disciplinas”.

Em 480 estabelecimentos de ensino públicos, de acordo com a mesma fonte, apenas cinco entram na categoria de "escolas com 'classificações internas' muito elevadas" e, nestas, a percentagem de alunos que têm entre 19 e 20 valores a todas as disciplinas ronda os 20 a 25 por cento.

Em sete anos de liceu, como se chamava o ensino secundário, quando eu era adolescente, lembro-me de um colega que tirava, sistematicamente, 18 valores a Matemática. Não me lembro de nenhum colega, quer da minha turma, quer de outras turmas, que andasse tranquilamente pelos 19 e 20 valores, como indicam os dados da Direcção-Geral das Estatísticas de Educação e Ciência.

Obter notas, em todas as disciplinas, iguais ou acima de 14 valores, dava direito àquilo que se chamava o “Quadro de Honra”, devidamente salientado, nas pautas de resultados trimestrais, com tinta vermelha.

Lembro-me de um professor de Latim, disciplina onde eu andava pelos 15, 16 valores, me ter dito uma vez que só daria uma nota de 20 valores a um aluno que lhe ensinasse alguma coisa.

Entretanto, a DGEEC está a “identificar as escolas onde as médias finais a pelo menos uma disciplina são de 19 ou 20 valores, percebendo se é uma situação pontual ou repetida ao longo do tempo”, escreve o Expresso.

Das duas, uma: ou os professores facilitam, de facto, e sobem um “bocadinho” as notas, acima daquilo que os alunos realmente merecem ou temos na calha uma geração de génios.

Opinião (Paulo Reis)

 

 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Comandos africanos da Guiné-Bissau: a traição dos oficiais portugueses

  

Ainda em 1974, o dispositivo militar português na Guiné-Bissau começou a ser desmantelado. Os quartéis foram esvaziados e as tropas, concentradas em Bissau, começaram a partir para a “metrópole”, como então se dizia. O Batalhão de Comandos Africanos, ao assistir a esta debandada, revoltou-se e barricou-se no quartel de Brá, exigindo falar com o Comandante-Chefe, o brigadeiro Carlos Fabião.

Foi uma reunião complicada, com os comandos alinhados na parada e Carlos Fabião a tentar acalmá-los, com um discurso titubeante, garantindo que não ia haver problemas com o PAIGC, que iam ser feitos cursos de pescadores e carpinteiros, para lhes permitir voltar à vida civil

Começou a chover e Carlos Fabião sugeriu que fossem para dentro do quartel. Recebeu a resposta óbvia e habitual: “Chuva civil não molha militares”

Alguns dos elementos mais corajosos interpelaram directamente o brigadeiro: “Vocês estão a ir embora, nós também queremos ir – embarca um soldado branco, embarca um soldado preto ao mesmo tempo.”

Carlos Fabião viu-se numa situação complicada, com os comandos a rodearem o seu carro e as vozes de indignação a subir de tom. O brigadeiro optou pela fuga, correndo para o carro, onde estava o motorista. Nessa corrida, os comandos formaram duas alas e Carlos Fabião abandonou o quartel debaixo de uma chuva de chapadas e pontapés, até conseguir entrar no carro. O ajudante de campo, um oficial da Marinha, nem esperou pela viatura, foi a correr até Bissau.

Os comandos africanos perceberam que estavam a ser traídos e resolveram vender caro a vida. Foram aos paióis, mas as G-3 tinham sido sabotadas e o mesmo acontecia com as granadas, inutilizadas. Depois de alguns dias de impasse, o comando de Bissau chamou os elementos do Batalhão e passou-lhes uma guia de marcha, com instruções para se apresentarem no seu quartel, em Brá, no mês de Janeiro – isto quando já se sabia que os militares portugueses deixariam a Guiné-Bissau antes de 14 de Setembro, data em que se comemorava o aniversário da sua declaração de independência, em Madina do Boé.

A guia de marcha era um documento simples, com o nome do soldado, patente, data de início das férias e regresso a Brá. Em cada guia de marcha, da meia-dezena que vi, estava apenas um rabisco imperceptível, onde deveria estar o nome do oficial que assinava a ordem.

Ao mesmo tempo, os salários dos comando africanos foram pagos, até janeiro. Confiantes na palavra dos oficiais portugueses e no documento que tinham nas mãos, a maioria dos comandos regressou às sua tabancas (aldeias) para gozar um período de férias, com os bolsos cheios de dinheiro.

Em janeiro de 1975, os comando africanos começaram a tentar regressar a Brá, mas encontraram o quartel ocupado por forças do PAIGC. Em desespero de causa, dirigiram-se à embaixada portuguesa e exigiram falar com o embaixador. Este telefonou aos responsáveis do PAIGC, dando conta da situação – largas dezenas de comandos concentrados diante da embaixada. O PAIGC ordenou imediatamente que uma força dos seus soldados fosse para lá, a fim de fazer debandar os comandos africanos – força essa que incluía uma dúzia de chaimites.

A partir daí, foi o descalabro total. Os comandos fugiram, tentando escapar ao cerco de PAIGC, cujas forças lhes deram 10 minutos para dispersar, caso contrário abriam fogo. A maioria conseguiu regressar às suas tabancas, mas durante quase um ano, o PAIGC perseguiu e fuzilou largas dezenas de comandos e membros das milícias.

Em 1981, era eu jornalista do semanário “Tempo” e mandaram-me falar com dois indivíduos africanos, na sala de reuniões. Foi assim que conheci o tenente Bailo Djau e o soldado Demba Embaló. Ambos tinham conseguido escapar ao PAIGC, através do Senegal. A viagem de Bailo Djau foi uma aventura digna de se contar. Sem dinheiro nem documentos, passou para o Senegal, para a região de Casamance, onde grassava uma guerra de guerrilha de um movimento separatista. 

Atravessou o Senegal e conseguiu chegar à Mauritânia, ao porto de Nouadhibou. O seu objectivo era arranjar forma de apanhar, clandestinamente, um navio que o levasse a Portugal. De repente, deu de caras com um navio de bandeira portuguesa. O capitão era branco e a restante população africana.

Bailo Djau chegou-se discretamente junto do capitão e disse-lhe: “Sou comando africano da Guiné-Bissau, leve-me para Portugal” O capitão do barco limitou-se a fazer sinal para entrar para o porão. Passadas algumas semanas, o barco pesqueiro ancorava no porto de Lisboa.

Bailo Djau ultrapassou a barreira dos polícias fiscais com a mesma frase: “Sou comando africano da Guiné”. Saído do porto, apanhou o primeiro táxi que viu e disse ao motorista: “Para o Batalhão de Comandos, por favor”. Chegado à porta de armas, perfilou-se, fez continência à sentinela e apresentou-se: “Tenente Bailo Djau, Batalhão de Comandos Africanos da Guiné-Bissau.” Entrou imediatamente no quartel e, mal tinha percorrido umas dezenas de metros, cruzou-se com um dos oficiais portugueses que fazia o enquadramento operacional das tropas dos comandos africanos – e que lhe pagou o táxi...

Demba Embaló fez um percurso idêntico, mas foi parar a Marrocos. Nunca me disse como conseguiu atravessar para Portugal. Na altura escrevi um pequeno artigo cujo título ainda recordo: “Na guerra, éramos todos iguais”. Estive alguns anos sem novidades de Bailo Djau. O seu camarada de armas, Demba Embaló, acabou por me dar uma triste notícia. Bailo Djau tinha percorrido Portugal, de ponta a ponta, a tentar fazer contacto com antigos militares da Guiné-Bissau. 

Andou por diversos países europeus, sempre com o mesmo objectivo: reunir financiamento e o maior número possível de ex-combatentes, para tentar criar uma guerra de guerrilha, contra o PAIGC, na fronteira Norte. Fez várias incursões em território guineense, mas acabou por ser traído e foi preso por uma unidade do exército senegalês. O tenente-coronel que comandava as tropas senegalesas deu ordens para Bailo Djau ser entregue às forças do PAIGC. Bailo Djau foi algemado e sentado no banco atrás do motorista. A dada altura, reparou que o jipe estava a entrar numa estrada com uma ravina de vários metros. Atirou-se ao condutor, virou subitamente o volante e o jipe despencou mais de uma dúzia de metros. Os soldados senegaleses que iam no jipe de escolta, alguns metros atrás, desceram a ravina. Nenhum dos quatro passageiros sobreviveu, incluindo Bailo Djau. 

Notícias / Paulo Reis

 

Radicalismo à venda em Lisboa

 

 
O Independente - 30 de Abril de 2004 (Paulo Reis)

O movimento islâmico Tabligh Jamaat: um factor de ruptura na tendência para a integração dos muçulmanos em Portugal

  

O Grupo extremista Tabligh Jamaat "representa, por um lado, e incontestavelmente, a força de maior dinamização do Islão entre os muçulmanos em Portugal. Por outro, o seu rigoroso tradicionalismo, traduzido na prescrição do próprio vestuário, na estrita separação entre os sexos, numa atitude de distanciamento em relação à sociedade exterior, representa, como já referi, um factor de ruptura na tendência histórica para a integração na atitude dos muçulmanos em Portugal", afirma Abdool Karim Vakil (filho do ex-presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa e investigador do prestigiado King'College em Londres) numa investigação intitulada “Do Outro ao Diverso – Islão e Muçulmanos em Portugal: história, discursos, identidades”

Os Tabligh Jamaat foram, recentemente, banidos da Arábia Saudita, que classificou o grupo como sendo "uma 'porta' para o terrorismo." Os Tabligh Jamaat são os responsáveis pela organização anual do maior encontro de muçulmanos, depois da peregrinação a Meca. Cerca de quatro milhões de elementos reúnem-se na cidade paquistanesa de Raiwind, havendo encontros semelhantes e de dimensão idêntica no Bangladesh e na Índia.

Os Tablighi Jamaat, que significa "o partido dos pregadores do Islão" foi fundado em 1926 pelo clérigo indiano Muhammad Ilyas al-Kandhlawi com o objetivo de espalhar o Islão para os não-muçulmanos e também para purgar a fé das influências de outras religiões, mais notavelmente as influências hindu e cristã na Índia Britânica na época.

A organização é um remanescente do movimento Deobandi do Islão, que surgiu na cidade indiana de Deoband, como resposta à suposta deterioração dos valores islâmicos na Índia. Antes um movimento local, os Tablighi Jamaat espalharam-se por diversos países. O grupo também organiza reuniões anuais semelhantes à que tem lugar na cidade de Raiwind,  na Índia e também no Bangladesh. Media locais consideram que o encontro de Bangladesh tem a mesma dimensão do organizado no Paquistão.

O movimento islâmico Tabligh Jamaat também reúne anualmente na Mesquita de Lisboa, num encontro internacional que decorre num ambiente aparentemente calma e descontraído, de acordo com Lusa. No entanto, num recente encontro, os membros do movimento recusaram falar à Comunicação Social, alegando que apenas que Esmael Loonat (um dos líderes do Tabligh Jamaat em Portugal) podia falar. Para além de Esmael Loonat, vários responsáveis da Comunidade Islâmica do Sul do Tejo e da Escola Islâmica de Palmela são membros do movimento.

 

De acordo com Esmael Loonat, em declarações ao jornal Público afirmou que, da parte dos Tabligh Jamaat "não existe rejeição dos valores ocidentais (…) os pregadores do Tabligh também não têm como objectivo a conversão dos não-muçulmanos (…) Só desenvolvemos a nossa actividade junto dos muçulmanos", acrescentou. 

Estas declarações, no entanto, são completamente contraditórias em relação à análise feita por Abool Karim Vakil, que salienta, no estudo acima referido, que os Tabligh Jamaat "representam, por um lado, e incontestavelmente, a força de maior dinamização do Islão entre os muçulmanos em Portugal." Abool Karim Vakil destaca, " (…) por outro, o seu rigoroso tradicionalismo, traduzido na prescrição do próprio vestuário, na estrita separação entre os sexos, numa atitude de distanciamento em relação à sociedade exterior, representa, como já referi, um factor de ruptura na tendência histórica para a integração na atitude dos muçulmanos em Portugal"

A rejeição dos valores ocidentais, por parte dos Tabligh Jamaat, é revelada de forma clara num artigo publicado em 2001, na revista islâmica Al-Madinah, editada pela Comunidade Islâmica do Sul do Tejo. De acordo com esse artigo da revista Al-Madinah, "nas escolas comuns (...) torna-se impossível salvaguardar a fé. A solução disto passa pela criação de instituições islâmicas, onde as crianças possam crescer num ambiente islâmico" - sendo a Escola Islâmica de Palmela um exemplo dessa estratégia.

Em 2004 os Tabligh Jamaat editaram uma tradução portuguesa daquilo que é a sua "bíblia", um livro  intitulado "Fazail-E-Amaal", “As virtudes das acções”, que esteve à venda na Mesquita de Lisboa apenas durante algumas horas. A publicação no semanário O Independente, de duas páginas sobre o movimento em Portugal e o conteúdo de "As Virtudes das Acções" (da minha autoria) atraiu a atenção de outros Órgãos de Comunicação Social e quando chegou à Mesquita de Lisboa uma carrinha da televisão, os elementos do grupo retiraram a publicação, rapidamente, dos escaparates.

No entanto, o próprio imã da Mesquita, David Munir, aconselhou a sua leitura durante a habitual oração de sexta-feira. O último capítulo do livro "As Virtudes das Acções" que tem como título: “A Degradação Muçulmana e a sua Única Solução” apela a um “forte contra-ataque”, no intuito de recuperar o domínio do Islão sobre o mundo, dentro dos limites e das directrizes da “Shariah”, de acordo com o blogue "O Carvalhadas".

O livro propõe ainda que, para atingir esses objectivos, sejam adoptados os “métodos e os meios demonstrados pelo Santíssimo Profeta de Alá, isto porque o profeta não só foi bem sucedido no seu objectivo, como foi capaz de eliminar todas as relações (religiosas) entre os seus seguidores e elementos de fora”, acrescenta "As Virtudes das Acções". Actualmente, há pelo menos seis comunidades islâmicas que estão a preparar a abertura de outras tantas escolas islâmicas, idênticas à Escola Islâmica de Palmela. 

Para além disso, existem várias "madrassas" (escolas religiosas islâmicas) espalhadas pelo país - por exemplo, em Odivelas, onde funciona uma escola de apreciável dimensão. A acrescentar a isto, há o facto de, na maioria das comunidades muçulmanas existentes em Portugal funcionarem "tribunais islâmicos", onde os casos são julgados de acordo com a "Sharia", a lei islâmica. Um desses tribunais funciona, há mais de uma dezena de anos, na Mesquita de Lisboa e é presidido pelo xeque David Munir. 

Para além da Mesquita de Lisboa há cerca de 50 mesquitas e locais de culto islâmicos, espalhados pelo país (incluindo até os Açores). Embora não haja números oficiais, calcula-se que existam cerca de 60 mil muçulmanos em Portugal, Há uma clara divisão, em termos de práticas religiosas e culturais, entre os muçulmanos provenientes da Guiné-Bissau - uma emigração mais antiga e bem integrada na sociedade portuguesa - e os muçulmanos provenientes do Paquistão, Bangladesh e Índia que, actualmente, são a maioria da comunidade islâmica.

Sociedade / Religião - Paulo Reis

Fraudes no reagrupamento familiar de imigrantes vão continuar

  Uma simulação de um pedido de reagrupamento familiar, numa família composta por residente em Portugal, mulher e filho menor, alvo do pedid...