quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O espelho cruel de Gaza: a esquerda europeia perante o islamismo

 

O antissionismo, envolto em linguagem progressista e apelos humanitários, surge como nova máscara de antigas formas de antissemitismo. Sob o pretexto da justiça social, ressurgem temas de perseguição e culpabilização do povo judeu, agora adaptados ao discurso político contemporâneo.

João Maurício Brás - Sol
15 de Outubro 2025

Num cartoon recente surge uma figura facilmente reconhecível como expressão do Hamas ou, em sentido mais amplo, do radicalismo islâmico. Segura um palestiniano num braço e um judeu no outro. Perante o anúncio de um cessar-fogo em Gaza, pergunta: «É para libertar os reféns judeus ou os reféns palestinianos?»

Os reféns israelitas, os ainda vivos, porque muitos foram brutalmente assassinados pelo Hamas, especialmente mulheres, começam finalmente a ser libertados. E, no entanto, continua por resolver uma questão ainda mais trágica: quando será verdadeiramente liberto o povo palestiniano, refém do próprio Hamas, do Irão e do ódio antissemita que o instrumentaliza? Após a retirada do exército israelita de certas zonas de Gaza, o Hamas iniciou uma nova vaga de execuções contra palestinianos considerados desobedientes aos seus ditames. O cartoon acerta, assim, numa das verdades fundamentais e frequentemente esquecidas deste conflito: os principais reféns do terrorismo islâmico antissemita são, muitas vezes, os próprios palestinianos.

Há, porém, uma segunda questão, igualmente inquietante: a coexistência cada vez mais visível entre a esquerda ocidental e este islamismo.

O massacre de 7 de outubro e o subsequente recrudescimento do conflito israelo-palestiniano revelaram o verdadeiro rosto da esquerda europeia contemporânea. Incapaz de pensar a tragédia fora do seu velho esquema ideológico de opressor e oprimido, grande parte dessa esquerda projetou sobre o Médio Oriente a sua grelha moral maniqueísta, onde Israel encarna o papel de colonizador e os palestinianos o de vítima absoluta. 

Essa leitura simplificadora, que confunde moral com ressentimento, expôs a falência ética e intelectual de uma tradição política que outrora se afirmava racional e universalista. A defesa automática de qualquer causa antiocidental, mesmo quando animada por um fanatismo teocrático e homicida, tornou-se reflexo condicionado de uma esquerda que já não distingue a crítica legítima do ódio civilizacional. 

O conflito mostrou, assim, uma esquerda europeia sem bússola moral, disposta a relativizar o terror em nome da sua velha mitologia revolucionária e do seu instinto pavloviano de oposição ao Ocidente. Como lembra Nora Bussigny, o antissemitismo mudou de aparência, mas permanece o mesmo tanto na extrema-direita como na extrema-esquerda.

Nos últimos meses surgiram dois livros notáveis sobre esta relação entre a esquerda radical e o islamismo político: Les Nouveaux Antisémites, de Nora Bussigny, e Les Complices du Mal, de Omar Youssef Souleimane. Ambos resultam de investigações diretas em ambientes de extrema-esquerda, em França, na Bélgica e até em universidades norte-americanas, procurando compreender como os acontecimentos de 7 de outubro desencadearam uma nova vaga de antissemitismo disfarçado de crítica à política de Israel.

No livro de Bussigny, revela-se com clareza como discursos progressistas, fundados na pretensão de superioridade moral, degeneraram em retórica de ódio e desumanização. A autora mostra como uma certa esquerda, que se apresenta como vítima de perseguições, se tornou ela própria veículo de intolerância, impondo uma visão maniqueísta do mundo em que o “outro”, seja o fascista imaginário ou o judeu real é sistematicamente desumanizado. “O ódio ao judeu une os islamitas e os militantes LGBT nos meios da extrema-esquerda”, escreve Bussigny. A amplitude geográfica e social da sua investigação confere ao estudo um valor comparativo raro, revelando um mesmo fundo ideológico de hostilidade identitária.

O antissionismo, envolto em linguagem progressista e apelos humanitários, surge como nova máscara de antigas formas de antissemitismo. Sob o pretexto da justiça social, ressurgem temas de perseguição e culpabilização do povo judeu, agora adaptados ao discurso político contemporâneo. Bussigny demonstra como certas narrativas de emancipação facilmente descambam em retóricas de ódio e alerta para a necessidade urgente de reafirmar a fronteira moral entre a crítica legítima e a desumanização do outro. O seu livro é essencial para compreender uma das tensões morais mais inquietantes da Europa atual: a transformação de parte da esquerda em portadora de um novo moralismo persecutório.

Por sua vez, Les Complices du Mal, do poeta e jornalista sírio Omar Youssef Souleimane, aprofunda esta denúncia a partir de uma perspetiva pessoal e trágica. Tendo vivido sob um regime totalitário, o autor reconhece na França contemporânea os sinais de uma aliança perversa entre a extrema-esquerda, sobretudo a La France Insoumise (LFI), e os movimentos do islamismo político. Essa aliança, construída em nome do anticolonialismo, da causa palestiniana e da luta contra o racismo, degenerou, segundo Souleimane, em cumplicidade com discursos sectários, misóginos e abertamente antissemitas.

A partir de observações diretas em manifestações e reuniões, Souleimane descreve um ambiente de confusão moral em que o combate ao imperialismo e à islamofobia serve de escudo para justificar a tolerância a formas explícitas de ódio e a rejeição da laicidade republicana. “A LFI e Rima Hassan encarnam o ódio à França, ao tolerarem formas explícitas de ódio e ao rejeitarem a laicidade republicana”, acusa o autor numa entrevista recente. A esquerda francesa, paradoxalmente, surge-lhe cada vez mais inimiga da liberdade e da razão crítica. As reações que o livro provocou, incluindo acusações de difamação vindas da própria esquerda, apenas confirmam o incómodo que causa ao questionar os limites da tolerância e os riscos do relativismo moral.

(Continua)

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