sábado, 18 de outubro de 2025

Entre o véu e a República: porque a burca não tem lugar nos espaços públicos portugueses

 

 Na sequência da aprovação, esta sexta-feira, em sede parlamentar, do projeto de lei que proíbe o uso de vestuário destinado a ocultar o rosto em espaços públicos
— uma medida amplamente interpretada como uma proibição da burca,
impõe-se um olhar sereno, informado e desprovido de instrumentalizações políticas sobre uma questão que toca simultaneamente a liberdade religiosa, a igualdade de género, a segurança coletiva e os fundamentos da convivência democrática.


Num momento em que Portugal se junta a outros países europeus que já adotaram legislação semelhante, torna-se essencial compreender não apenas o que a lei diz, mas o que o fenómeno que pretende regular representa em diferentes contextos sociais e culturais — nomeadamente à luz de experiências vividas em sociedades onde a tensão entre tradição, modernidade e identidade religiosa se manifesta de forma aguda.
Fui docente no Ensino Secundário e Superior na Tunísia, entre 2017 e 2019.
Durante esses três anos, testemunhei uma transformação silenciosa, mas profunda: o aumento abrupto do uso da burca, mesmo em ambientes historicamente laicos.
A Tunísia, herdeira do projeto modernizador de Habib Bourguiba — que, em 1956, aboliu a poligamia e promoveu a igualdade jurídica entre homens e mulheres — sempre se orgulhou de uma tradição de emancipação feminina rara na região.
 
No entanto, após a Revolução do Jasmim, em 2011, e a subsequente legalização do Movimento Ennahda, partido de inspiração islamita, assistiu-se a uma reconfiguração das normas de visibilidade feminina.
Nas salas de aula, a maioria das alunas usava vestuário comum — calças, blusas, saias — ou, no máximo, o hijab, o véu que cobre os cabelos, mas deixa o rosto visível.
Esse uso era respeitado, sem controvérsia.
Mas a burca, essa sim, era uma novidade desconcertante.
Diretores de escola, Professores, muitos deles formados na tradição secular tunisina, confessavam perplexidade: “Isto nunca existiu aqui”, diziam, com um misto de inquietação e desconfiança. 
 
Não se tratava de islamofobia, mas de um choque com uma prática que parecia alheia à identidade nacional recentemente construída.
Lembro-me, com particular intensidade, de um episódio durante a vigilância de exames nacionais, em pleno Ramadão.
O calor era insuportável — as salas não tinham ar condicionado, e os alunos suavam copiosamente.
Uma aluna entrou coberta pela burca integral.
Os alunos olhavam perplexos.
A direção interveio, não por hostilidade, mas por questões de identificação e segurança, mas também por uma preocupação ética silenciosa: aquela jovem estaria a agir por convicção própria, ou sob pressão familiar ou comunitária?
Naquele contexto, questionar a burca era delicado. 
 
O Ennahda, embora não estivesse no poder na altura, exercia uma influência simbólica considerável e qualquer crítica podia ser interpretada como um ataque à “identidade islâmica”.
Tudo isto senti na pele.
Essa experiência ajuda a compreender por que, num país como Portugal — cuja tradição republicana assenta na laicidade, na igualdade de género e na visibilidade como condição da vida em comum — a proibição da burca em espaços públicos é não apenas legítima, mas coerente com os valores constitucionais. 
 
A burca não é um acessório de moda.
É um símbolo carregado de significados políticos, religiosos e sociais.
Em contextos onde a liberdade feminina foi historicamente conquistada contra práticas patriarcais, a sua imposição — mesmo que disfarçada de “escolha” — representa um retrocesso.
E mesmo quando não há coerção explícita, a normalização da invisibilidade do rosto feminino reforça uma lógica que vê a mulher como fonte de tentação, como corpo que deve ser escondido para preservar a “moral pública”.
Essa visão é incompatível com a ideia de cidadania plena.
Importa sublinhar: proibir a burca não é proibir o Islão. 
 
O hijab continua plenamente permitido — e respeitado — em Portugal, como aliás o é em França, Bélgica ou Dinamarca, países que já adotaram legislação semelhante.
A distinção é crucial: o véu que cobre os cabelos é uma expressão de fé compatível com a vida em sociedade;
a burca, que apaga o rosto, rompe com o princípio básico da reconhecibilidade mútua, essencial à convivência democrática.
Além disso, há uma dimensão de segurança incontornável.
Em transportes públicos, escolas, tribunais ou manifestações, a identificação visual é um pilar da ordem pública.
Não se trata de desconfiança generalizada, mas de garantir que todos os cidadãos — homens e mulheres — possam ser identificados quando necessário.
A Tunísia, aliás, compreendeu isso: em 2019, proibiu a burca em espaços públicos por razões de segurança, após uma série de atentados terroristas (e eu assisti a eles!).
A medida não foi apresentada como um ataque ao Islão, mas como uma defesa do Estado laico e da segurança coletiva.
Portugal não vive sob ameaça terrorista iminente, nem tem uma tradição de uso da burca. 
 
Por isso mesmo, a sua introdução em espaços públicos não é um fenómeno cultural autóctone, mas uma importação de lógicas que, em muitos casos, se aliam a visões fundamentalistas da religião e do género.
Nesse contexto, a proibição não é um ato de exclusão, mas de afirmação dos valores republicanos.
A liberdade religiosa é um direito fundamental — mas não absoluto.
Quando entra em conflito com outros direitos fundamentais, como a igualdade entre homens e mulheres ou a segurança coletiva, exige-se equilíbrio.
 
E nesse equilíbrio, o rosto descoberto não é um luxo: é uma condição mínima de dignidade, de reconhecimento, de pertença a uma comunidade de iguais.
Na Tunísia, aprendi que a liberdade das mulheres não se mede apenas pelo direito de votar ou estudar ou de conduzir ou de publicar livros ou realizar filmes, mas também pelo direito de ser vista.
Em Portugal, devemos defender esse mesmo princípio — não por medo do outro, mas por fidelidade ao que somos todos.
 
José Paulo Santos.
Revista Visão, 17 de Outubro de 2025.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Failed integration and the fall of multiculturalismo

  For decades, the debate in Denmark around  problems with mass immigration was stuck in a self-loathing blame game of " failed integra...