A mutilação genital feminina trata-se de um crime público, que não depende de queixa da vítima, ou seja, qualquer pessoa pode alertar o Ministério Público se tiver conhecimento de um caso.
Uma questão fundamental que tentámos esclarecer tem a ver com uma enorme disparidade de dados, em matéria de casos de MGF, entre as autoridades de Saúde e a Procuradoria Geral da República. As autoridades de saúde - nomeadamente a Direcção Geral de Saúde - avançam um número de casos sinalizados que ultrapassam largamente as centenas ("No total, desde 2014, as autoridades de saúde registaram 1.091 casos de MGF", refere a DGS, citada pelo jornal Público").
“A identificação ocorreu em diversos âmbitos: consultas de vigilância da gravidez, parto, puerpério, e em consultas e internamentos nos cuidados de saúde hospitalares e cuidados de saúde primários”, acrescenta a DGS, relativamente apenas a 283 casos identificados entre 2023 e 2024.
Por outro lado, o Observatório Nacional de Violência e Género estima que estejam em risco de serem submetidas à MGF, em Portugal, cerca de 6.500 crianças até 15 anos ou mais. A mesma instituição calcula que perto de 1.800 crianças, na mesma faixa etária, tenham sido submetidas à MGF.
Mas, de acordo com a informação que nos foi fornecida pela Procuradoria Geral da República, entre 2019 e Maio de 2024, foram abertos apenas um total de 15 processos-crime pela prática de MGF, dos quais 12 foram arquivados, estando sob investigação apenas 3 casos. Trata-se de uma disparidade estranha, pelo facto de MGF ser crime público - ou seja, qualquer pessoa que tenha conhecimento desse crime tem a obrigação de o comunicar às autoridades.
O facto é que, em Portugal, "o número de procedimentos criminais instaurados pela prática de MGF não possui expressão estatística, no entanto suspeita-se, pelo trabalho desenvolvido por várias entidades, que esta prática exista entre nós, por termos como residentes algumas comunidades originárias de regiões onde a MGF se encontra disseminada", refere o guia de procedimentos "para Órgãos de Polícia Criminal" nos casos de sinalização de MGF.
Caso a situação implique a "obtenção de informações mais precisas sobre a urgência da intervenção no caso de risco de MGF, deve efetuar, de imediato, o contato com o Magistrado do Ministério Público e a CPCJ competentes, de modo a garantir a proteção e o encaminhamento da possível vítima para um meio protegido, afastando-a do meio de risco", adianta o guia de procedimentos.
"A competência para a investigação criminal deste crime é do Órgão de Polícia Criminal territorialmente competente - Guarda Nacional Republicana ou Polícia de Segurança Pública - exceto se do crime resultar a morte da vítima, sendo da competência investigatória da Polícia Judiciária", continua o manual.
De entre as entidades a contactar, o guia de procedimentos refere uma lista concreta:
- O Centro de Saúde ou Hospital, em caso de suspeita de prática de MGF recente.
- A CPCJ, para avaliação articulada da urgência da necessidade de intervenção, de acordo com os procedimentos previstos, e permitir, assim, a aplicação de medidas de proteção.
- O Ministério Público, quando se confirma a prática da MGF ou se for necessária uma intervenção de urgência.
- O INML, para realização do exame médico necessário.
Num outro estudo - "Guia Prático de Abordagem, Diagnóstico e Intervenção - Maus Tratos em Crianças e Jovens, da Direção-Geral da Saúde" - refere-se que, "a nível Nacional os casos observados devem ser registados na plataforma web designada de 'Registo de Saúde Electrónico - Portal do Profissional” (RSE- PP), anteriormente designada “Plataforma de Dados da Saúde (PDS)”. Num gráfico que acompanha uma dissertação sobre a MGF, surgem muito mais dados sobre o problema da MGF.
A Gazeta Digital tentou contactar todas as entidades referidas nestes estudos, mas não obteve resposta de nenhuma delas, com excepção da Procuradoria Geral da República.



